Pluralidade de contraordenações. Aplicação da lei no tempo. Exclusão da culpa. Atenuação especial da coima

PLURALIDADE DE CONTRAORDENAÇÕES. APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO. EXCLUSÃO DA CULPA. ATENUAÇÃO ESPECIAL DA COIMA

RECURSO CRIMINAL Nº 61/23.4T8TND.C1
Relator: PAULO GUERRA
Data do Acórdão: 19-06-2024
Tribunal: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA)
Legislação: ARTS. 4, Nº 2, DA LEI Nº 50/2006, DE 29/8; 12º E 48º, Nº 1, ALÍNEA E), DO DL 183/2009; DECRETO-LEI Nº 102-D/2020, DE 10/12; 27º, 66º E 23º-A DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; 18º, N.ºS 1 E 3, DO DEC.-LEI N.º 433/82; 35º DO CÓDIGO PENAL

 Sumário:

1. As normas ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais») não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contraordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.
2. A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, nº 10, da CRP e art. 50º do RGCOC) – para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCOC.
3. A Recorrente, enquanto titular de dois títulos de utilização dos recursos hídricos, tinha o dever e a obrigação legal de proceder em conformidade – por isso, inexiste, de facto, qualquer duplicação destas duas contraordenações, uma vez que estamos perante dois títulos distintos, de onde emergem obrigações diferentes, e que dizem respeito a realidades igualmente distintas (uma situação é a captação de água subterrânea e outra, para a qual é necessária licença diversa, é a rejeição de águas residuais).
4. Quanto â legislação aplicada no caso, não se tratou de uma «despenalização» mas de uma revogação de legislação anterior e substituição por outra que trata das mesmas questões e pune os mesmos actos contraordenacionais, mantendo-os com esse mesmo estatuto de ilícito de mera ordenação social – e o que o tribunal fez foi a devida aplicação da norma do artigo 4º (nomeadamente o seu nº 2) da Lei nº 50/2006, de 29/8 (a referida Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais) que prescreve o que alude também a norma do artigo 3º do DL 400/82, de 27/10, quanto à aplicação das leis no tempo.
5. A verificação do estado de necessidade desculpante depende do preenchimento dos seguintes pressupostos: 1) a verificação de uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro; 2) o facto ilícito praticado tem de ser adequado, no sentido de idóneo a afastar o perigo que não seria removido por outro modo; 3) que se conclua não se mostrar razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente, sendo tais pressupostos cumulativos, pelo que a não verificação de um dos requisitos implica, inevitavelmente, a não aplicação da causa de exclusão da culpa.
6. Sobre a operação do cúmulo jurídico, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente» – a decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo, mesmo em sede contraordenacional, deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado.
7.Odever de defesa do ambiente, previsto no artigo 66º da CRP, é caracterizado por 3 aspectos: – a obrigação de não atentar contra o ambiente; – a existência das obrigações positivas, como, por exemplo, a obrigação de tratar de resíduos ou efluentes domésticos e industrias; – o dever de impedir os atentados de outrem ao ambiente, incluído pelo exercício da acção popular.
8. Em caso de atentado grave ao ambiente, as decisões dos nossos tribunais devem ser corajosas, proactivas, preventivas e suficientemente severas para fazer recuar o cego e surdo transgressor, o infiel «jardineiro/cidadão» ou a empresa mais negligente.
(Sumário elaborado pelo Relator)

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