Mandado de detenção europeu. MDE. Princípio do reconhecimento mútuo. Critério da dupla incriminação. Recusa facultativa. Reserva de soberania. Crime de subtracção de menor. Consumação do crime. Crime permanente. Crime de execução reiterada ou duradoura
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU. MDE. PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO. CRITÉRIO DA DUPLA INCRIMINAÇÃO. RECUSA FACULTATIVA. RESERVA DE SOBERANIA. CRIME DE SUBTRACÇÃO DE MENOR. CONSUMAÇÃO DO CRIME. CRIME PERMANENTE. CRIME DE EXECUÇÃO REITERADA OU DURADOURA
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU Nº 14/23.2YRCBR
Relator: PAULO GUERRA
Data do Acórdão: 08-03-2023
Tribunal: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Legislação: CONVENÇÃO DA HAIA DE 1980; ARTIGOS 1.º, 11.º, 12.º, 13.º E 21.º, N.º 4 E 5, DA LEI N.º 65/2003 DE 23 DE AGOSTO; ARTIGOS 56.º, N.º 1, E 74.º, N.º 1, DA LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO; ARTIGO 61.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E F), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
I – O mandado de detenção europeu é um instrumento de cooperação judiciária, feita directamente entre as autoridades judiciárias dos Estados membros, visa a detenção e entrega por um Estado membro de pessoa procurada por outro Estado membro, que emite o mandado para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, nos termos do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto, e é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo, que assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados membros da UE, em conformidade com o disposto naquela Lei e na Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13/06.
II – Em caso de oposição à execução do MDE o julgamento decorre perante o Tribunal da Relação, que funciona como tribunal de 1.ª instância, constituído pelo juiz relator e dois juízes adjuntos, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, ex vi artigo 74.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, decorrendo da aplicação subsidiária do artigo 61.º, n.º 1, alíneas a) e f), do Código de Processo Penal que a pessoa procurada tem o direito de estar presente em audiência assistida por defensor, cuja presença é obrigatória, nos termos do artigo 21.º, n.º 4 e 5, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.
III – Tendo em conta que a execução de um MDE traduz uma restrição importante ao direito à liberdade, num horizonte territorial alargado, e o período de tempo em que a detenção potencialmente se pode manter sem que seja tomada a decisão final de entrega, a sua prossecução e a decisão que a montante é tomada quanto à sua emissão devem obedecer aos princípios da legalidade, da excepcionalidade, da subsidiariedade e da proporcionalidade lato sensu.
IV – No processo de execução de MDE a intervenção do tribunal do Estado de execução é exígua e a actividade judicial a exercer é limitada à verificação da regularidade do mandado, dos requisitos formais do mandado, à ocorrência de situação de recusa da sua execução e ao controle do respeito pelos direitos fundamentais, não tendo de se pronunciar sobre a bondade, utilidade, adequação ou oportunidade da emissão do MDE.
V – O MDE está sujeito a uma reserva de soberania que, nalguns casos, impõe à autoridade judiciária portuguesa a recusa de execução do mandado, noutros permite-lhe a recusa do mandado e que solicite ao Estado de emissão a prestação de garantias especiais para que o mandado possa ser executado, como decorre dos artigos 11.º, 12.º e 13.º da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto.
VI – As causas de recusa facultativa de execução, constantes do artigo 12.º, n.º 1, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.
VII – O preenchimento de uma das causas de recusa facultativa não autoriza ou determina a imediata recusa de execução do MDE, antes exige a ponderação, face às circunstâncias concretas do caso, dos interesses de ordem pública na prossecução da justiça do Estado-membro de emissão e os correspondentes interesses do ordenamento jurídico do Estado-membro de execução.
VIII – O crime de subtracção de menor não se integra na alínea q) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, respeitando esta a crimes contra a liberdade pessoal, que em Portugal legitimam a existência dos artigos 161.º, 158.º e 162.º do Código Penal, ligados mais à violação dos valores vida, integridade física ou liberdade de um ser humano.
IX – A pendência de processo de promoção e protecção, instaurado em Portugal para colmatar o perigo em que se encontravam as crianças na sequência da detenção da mãe por força deste MDE, não tem qualquer influência processual substantiva sobre a decisão a proferir, mesmo que nele se tenha enxertado um pedido de entrega de crianças ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, não dependendo a sua execução do que vier a ser decidido sobre o destino das crianças, a menos que se considere existir grave risco para estas no retorno ao país da sua residência habitual.
X – A Convenção de Haia visa assegurar o retorno imediato das crianças ilicitamente transferidas para outro Estado ou neles retidas indevidamente, fazer respeitar, nos Estados contratantes, os direitos de guarda e de visita neles existentes e assenta nos postulados de que a subtracção ilícita gera uma ruptura negativa na vida da criança e que as autoridades do país da sua residência habitual são as que, em princípio, se encontram em condição mais favorável para decidir sobre a guarda e o local de residência da criança.
XI – O crime de subtracção de menor, do artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal é um crime permanente, de execução reiterada ou duradoura, que se consuma com a não entrega dos filhos ao progenitor para o espaço de convívio determinado por decisão judicial, mas cuja conduta ininterrupta ilegal gera consumação continuada ou consumação seguida de uma persistente violação do bem jurídico.
XII – Tendo a lesão do bem jurídico protegido, a consumação do crime, ocorrido no território do Estado de emissão do MDE, com a não entrega das crianças, mas continuando a compressão em Portugal, a situação enquadra-se no circunstancialismo legal previsto no artigo 12.º, n.º 1, alínea h), ponto i), da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.
XIII – Tendo o núcleo essencial dos acontecimentos relevantes para a investigação e o exercício do procedimento criminal decorrido no território do Estado de emissão do MDE, a perseguição e conhecimento da infracção deve prosseguir neste Estado, por o acesso aos elementos relevantes ser mais fácil e expedito, sem que daí derivem dificuldades para a defesa da requerida.