Fundamentação. Crime de maus tratos. Descrição dos elementos subjectivos do crime. Maus tratos a criança de tenra idade. Alteração da matéria de facto impugnada. Sindicância da pena aplicada. Condições impostas à suspensão da execução da pena. Proibição de exercício de actividade que implique a guarda de menores. Pagamento de indemnização à vítima em caso de inexistência de pedido civil

FUNDAMENTAÇÃO. CRIME DE MAUS TRATOS. DESCRIÇÃO DOS ELEMENTOS SUBJECTIVOS DO CRIME. MAUS TRATOS A CRIANÇA DE TENRA IDADE. ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO IMPUGNADA. SINDICÂNCIA DA PENA APLICADA. CONDIÇÕES IMPOSTAS À SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA. PROIBIÇÃO DE EXERCÍCIO DE ACTIVIDADE QUE IMPLIQUE A GUARDA DE MENORES. PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO À VÍTIMA EM CASO DE INEXISTÊNCIA DE PEDIDO CIVIL

RECURSO CRIMINAL Nº 1641/20.5T9CLD.C1
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Data do Acórdão: 06-11-2024
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 4
Legislação: ARTIGOS 50.º, 51.º, N.º 1, 52.º, N.º 2, 71.º E 152.º-A, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 358.º, N.º 1, 374.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

 Sumário:

I – A deficiência da fundamentação só integra a nulidade de falta de fundamentação quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do Arg., ou à determinação das medidas das penas.
II – Quando, embora não conste da decisão recorrida qualquer fundamento autónomo para se terem dado como provados os factos relativos aos elementos subjectivos dos crimes, decorre, necessariamente, dos restantes factos objectivos dados como provados que as Arg. conheciam as funções que desempenhavam, as respectivas obrigações, as características das crianças que tinham a seu cargo; sabiam que as suas acções molestavam física e psicologicamente as crianças; agiram com essa intenção, para que estas lhes obedecessem; agiram sempre livre e conscientemente, até porque foram, em algumas das situações, criticadas pelas suas acções, seria um formalismo de utilidade duvidosa remeter os autos ao tribunal recorrido para fazer essa fundamentação, com o inevitável atraso na resolução do caso.
III – Quando é absolutamente irrelevante para a decisão da causa, não deve fazer-se a alteração da matéria de facto impugnada, porque a prática de actos inúteis é proibida.
IV – Os bens jurídicos protegidos pelo crime de maus tratos, do artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, que prevê vários tipos de crimes de naturezas diferentes, são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, portanto também a saúde, enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica.
V – Integram o conceito de maus-tratos o tratamento fisicamente brusco, como pegar num criança de tenra idade por um braço, elevá-la no ar e deixá-la cair, como se fosse um saco de batatas, ou atirá-la para cima do catre, o puxar-lhe pelos cabelos para que a criança permaneça deitada, o retirar-lhe, à força, o biberão da boca quando se encontrava a beber leite, o bater com força, com uma colher ou um prato de metal, numa mesa em que se encontram crianças a comer, causando-lhes medo, o impedir outras funcionárias de acalmarem e confortarem uma criança que se encontrava a chorar, o não dar de comer a uma criança que se encontrava a chorar com fome, o alimentar uma criança, inserindo-lhe na boca colheres de sopo, com força, de forma repetida e sucessivamente, sem a deixar respirar nem engolir, o colocar, à força, a caneca na boca de uma criança, com uma das mãos e, com a outra mão, segurar a criança pelo queixo, obrigando-a a beber o leite, o agarrar uma criança por ambos os braços, junto às omoplatas e, por duas vezes, com força, abaná-la ao mesmo tempo que, com a mesma intensidade, ora a sentava e a abanava pelos braços, ora a levantava e a abanava do mesmo modo, o manter imobilizada uma criança, com um dos braços, mantendo-se debruçada sobre o mesmo, e inserir com a outra mão, repetidamente e à força, no ânus da mesma uma embalagem de bebegel e a exposição ao frio, sentando as crianças nuas nos bacios.
VI – Quando as penas aplicadas na 1ª instância se afastam relevantemente das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares, justifica-se a intervenção correctiva dos tribunais de recurso.
VII – Nos crimes de maus-tratos a crianças justifica-se, como reforço preventivo da reincidência, o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à proibição de exercer qualquer actividade que implique ter menores à sua guarda e responsabilidade.
VIII – Como se justifica o condicionamento dessa suspensão, como reforço do conteúdo educativo e pedagógico da pena, ao pagamento de uma quantia à vítima, mesmo que esta não tenha feito pedido cível, não havendo qualquer impedimento legal ou constitucional a esse condicionamento.
(Sumário elaborado pelo Relator)

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