Capacidade judiciária. Capacidade jurídica. Integração de lacunas em processo penal. Representação do arguido nos termos previstos no processo civil. Direitos do arguido. Direito de defesa. Nomeação de curador ao arguido. Irregularidade que influi na decisão da causa. Incapacidade do arguido posterior aos factos ilícitos. Inimputabilidade. Defensor do arguido. Processo equitativo. Presença do arguido em audiência
CAPACIDADE JUDICIÁRIA. CAPACIDADE JURÍDICA. INTEGRAÇÃO DE LACUNAS EM PROCESSO PENAL. REPRESENTAÇÃO DO ARGUIDO NOS TERMOS PREVISTOS NO PROCESSO CIVIL. DIREITOS DO ARGUIDO. DIREITO DE DEFESA. NOMEAÇÃO DE CURADOR AO ARGUIDO. IRREGULARIDADE QUE INFLUI NA DECISÃO DA CAUSA. INCAPACIDADE DO ARGUIDO POSTERIOR AOS FACTOS ILÍCITOS. INIMPUTABILIDADE. DEFENSOR DO ARGUIDO. PROCESSO EQUITATIVO. PRESENÇA DO ARGUIDO EM AUDIÊNCIA
RECURSO CRIMINAL Nº 32/23.0PBCTB.C1
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Data do Acórdão: 06-11-2024
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 2
Legislação: ARTIGOS 20.º, N.º 4, E 32.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; ARTIGOS 20.º, 118.º E 127.º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 4.º, 61º, N.º 1, 64.º, 118º, N.º 2, 123.º, 332.º, N.º 1, E 334.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; ARTIGO 67.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGOS 15.º A 17.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGO 6º DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS
Sumário:
I – A integração de lacunas no processo penal pelas normas do processo civil tem limites, nomeadamente resultantes da compatibilização da norma do processo civil que se pretenda aplicar com os valores e a ideologia próprios do sistema processual penal vigente.
II – Para exercer os direitos que lhe assistem o arguido tem de ser capaz de entender e compreender as acusações que lhe são dirigidas e interagir em conformidade, pois a defesa assenta na sua própria vontade.
III – A representação do arguido nos termos previstos no C.P.C. é totalmente incompatível com os seus direitos de defesa, porque enquanto no processo civil a incapacidade de estar em juízo pode ser suprida, o arguido em processo penal é titular de um conjunto de direitos cujo intendido exercício pessoal, ou possibilidade disso, não é conciliável com a sua representação.
IV – A pessoalidade do direito de defesa do arguido afasta de todo a hipótese de ser exercido por outrem, porque estando em causa a averiguação factos cuja autoria é imputada ao arguido só ele pode decidir se os esclarece e só ele pode dar a sua versão dos mesmos.
V – A circunstância de o arguido estar obrigatoriamente representado no processo crime por advogado não altera aquela conclusão, porque esta é uma defesa de cariz técnico, que não se substitui à defesa pessoal, apenas pelo próprio exercitável.
VI – O recurso indevido ao C.P.C. para integração de lacunas provoca a irregularidade do acto, nos termos dos artigos 118.º, n.º 2, e 123.º do C.P.P.
VII – O suprimento da incapacidade do arguido através da nomeação de curador provisório integra uma irregularidade que influi na decisão da causa e que é, por isso, de conhecimento oficioso.
VIII – A incapacidade para prestar declarações e para compreender posterior à prática dos factos coloca uma questão eminentemente procedimental, que nada tem que ver com a substantiva (in)imputabilidade.
IX – A inimputabilidade é a falta de capacidade para «avaliar a ilicitude do facto e de se determinar por essa avaliação», e refere-se ao momento da prática do facto, e a incapacidade processual respeita ao momento da intervenção processual.
X – A nossa legislação penal e processual penal é totalmente omissa quanto à solução processual a tomar em caso de incapacidade processual do arguido ocorrida posteriormente à prática dos factos.
XI – As garantias de defesa do arguido, condensadas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, englobam todos os instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação, de modo a atenuar a desigualdade de armas face ao poder institucional do Estado, podendo e devendo esta norma ser fonte autónoma de garantias de defesa.
XII – Ao estabelecer que o arguido tem direito a escolher um defensor, e não apenas que tem direito a assistência de defensor, o artigo 32.º, n.º 3, da Lei Fundamental erige o arguido em verdadeiro sujeito do processo, com direito a organizar a sua própria defesa, e se o arguido não exercer o seu direito de escolher defensor a tutela processual objectiva dos seus direitos será garantida no plano técnico, e só nesse, através da nomeação de defensor oficioso.
XIII – Decorre da Constituição da República Portuguesa e dos instrumentos internacionais a que Portugal aderiu a imposição de considerar processualmente incapaz o arguido portador de anomalia psíquica que não possa, por essa razão, exercer a sua autodefesa.
XIV – No estrito cumprimento das exigências inerentes ao processo equitativo, o C.P.P. estabelece como regra a obrigatoriedade de o arguido estar presente na audiência de julgamento, dependendo da sua vontade expressa a realização da audiência na sua ausência, decisão pessoal do arguido assumida em consciência e ponderado o prejuízo que possa advir para a sua defesa, implicando isto, obviamente, que este se encontra no pleno exercício da sua capacidade processual penal.
XV – Desta obrigatoriedade da presença, que se estende a toda a audiência de julgamento e que impede o arguido de se afastar e permite ao tribunal tomar as medidas necessárias a evitar esse afastamento, decorre a importância que o legislador atribui à assistência do arguido a toda a produção de prova, incluindo instruir o seu defensor relativamente à sua posição quanto ao desenrolar das provas.
XVI – Em caso de ausência auto provocada, querida ou consentida, a lei permite a continuação do julgamento mas com limites, porque pressupõe que tenha sido dada oportunidade ao arguido de falar e exige, cumulativamente, que o juiz presidente entenda não ser indispensável a sua presença.
XVII – Não constando do relatório pericial se a incapacidade do arguido de prestar declarações em tribunal e de compreender e apreender é transitória ou definitiva/irreversível, tal terá que ser apurado em nova ou complementar perícia médico-psiquiátrica a realizar, devendo o procedimento ser suspenso entretanto.
XVIII – Apesar de não constar dos artigos 118.º e 127.º do Código Penal, a extinção/arquivamento do procedimento criminal em caso de comprovada incapacidade total, processual, definitiva e irreversível do arguido é a solução mais conforme aos princípios do processo equitativo, do direito pessoal de defesa e da dignidade humana.