Apreciação crítica da prova. Comportamento das vitimas de agressão sexual e de violência doméstica. Crime de pornografia de menores. Pornografia. Conceito de menor para efeitos do crime de pornografia de menores. Valores protegidos pelo crime de pornografia de menores. «Sexting». Consentimento. Crime de violação agravado. Violência no crime de violação. Crime de violência doméstica

APRECIAÇÃO CRÍTICA DA PROVA. COMPORTAMENTO DAS VITIMAS DE AGRESSÃO SEXUAL E DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES. PORNOGRAFIA. CONCEITO DE MENOR PARA EFEITOS DO CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES. VALORES PROTEGIDOS PELO CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES. «SEXTING». CONSENTIMENTO. CRIME DE VIOLAÇÃO AGRAVADO. VIOLÊNCIA NO CRIME DE VIOLAÇÃO. CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

RECURSO CRIMINAL Nº 28/21.7PAPBL.C1
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Data do Acórdão: 06-11-2024
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 3
Legislação: ARTIGO 38.º, N.ºS 2 E 3, 152.º, N.º 2, ALÍNEA A), 164.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA A), E 176.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CÓDIGO PENAL; ARTIGO 2.º, ALÍNEA C), DO PROTOCOLO FACULTATIVO À CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA RELATIVO À VENDA DE CRIANÇAS, PROSTITUIÇÃO INFANTIL E PORNOGRAFIA INFANTIL, ADOPTADO EM NOVA IORQUE EM 25 DE MAIO DE 2000; ARTIGO 9.º DA CONVENÇÃO SOBRE O CIBERCRIME, ADOPTADA EM BUDAPESTE EM 23.11.2001

 Sumário:

I – Estudos indicam que na reacção perante o agressor, as vitimas de agressão sexual e de violência doméstica podem ter comportamentos considerados incoerentes pelo cidadão comum, por ficarem, muitas vezes, mumificadas durante e após o contacto sexual, por não serem capazes de tomar decisões nem de pedir ajuda, por se culparem a si próprias, por se tornarem dependentes emocionalmente do agressor, por apresentarem sentimentos ambivalentes de amor/ódio, desejo/repulsa, libertação/dependência, comportamentos que podem traduzir a maneira como a vitima conseguiu sobreviver a eventos tão violentos e traumáticos.
II – Na fundamentação da decisão de facto não basta afirmar-se que a vitima teve comportamentos incongruentes – por exemplo ter pedido namoro ao arguido em vez de o afastar, manter a relação abusiva e, quando traída, insistir para reatarem -, para descredibilizar a sua versão porque, provado o domínio do arguido, o contexto demonstra que o comportamento da ofendida ocorreu numa relação de violência física e psíquica, da qual resultou stress prós traumático, com surtos psicóticos e ideação suicida.
III – Numa tal relação não é necessário que o arguido verbalize que publicará fotos e vídeos íntimos da vítima se ela não aceder às suas exigências para que a ameaça de publicação se verifique, pois só o facto de o arguido ter as fotos e vídeos na sua posse vale por si só como ameaça, contribuindo para a manutenção da relação.
IV – Com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de pornografia de menores do artigo 176.º do Código Penal alargou o âmbito da incriminação a comportamentos novos.
V – Tal como está definida no artigo 2.º, alínea c), do Protoloco Facultativo, de 25 de maio de 2000, à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo à venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil, a pornografia infantil designa qualquer representação, por qualquer meio, de uma criança no desempenho de actividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais.
VI – A pornografia abrange todo o material que, independentemente do seu suporte, representa menores, sejam estes reais, aparentes ou até virtualmente criados, em comportamentos sexualmente explícitos.
VII – Para efeitos do artigo 176.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e como decorre do artigo 9.º da Convenção sobre o Cibercrime, menores são crianças e jovens que ainda não tenham completado 18 anos de idade, sendo irrelevante se já iniciaram a sua actividade sexual.
VIII – Na tipificação objectiva o legislador não previu idade inferior aos 18 anos, sendo a única excepção o n.º 6 do artigo 176.º do Código Penal.
IX – Os valores protegidos pelo crime de pornografia de menores ultrapassam a liberdade e autodeterminação sexual do individuo que, no critério do artigo 176.º do Código Penal, se presume que não se encontra formada e consolidada antes dos 18 anos.
X – O tipo legal de pornografia de menores do artigo 176.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, prevê e pune o que na terminologia anglo-saxónica se designa por «sexting» (de sex e tenting) de adulto com crianças ou jovens com menos de 18 anos de idade, que consiste em estabelecer contactos à distância, através da internet, do telemóvel, ou de qualquer outra tecnologia da informação e da comunicação, aliciando as crianças ou jovens a enviar fotografias, filmes ou gravações pornográficas.
XI – O crime de pornografia de menores é um crime de perigo abstracto, porque o preenchimento do tipo objectivo do ilícito basta-se com a mera colocação em perigo do bem jurídico, perigo esse abstracto dado que não integra o elemento do tipo, e é um crime de mera actividade, porque o tipo incriminador se preenche através da mera execução de um determinado comportamento.
XII – Para efeitos do artigo 38.º, n.º 2 e 3, do Código Penal para que o consentimento seja válido o jovem tem que ter mais de 16 anos de idade, tem de possuir discernimento suficiente para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta e ele tem que traduzir uma vontade séria, livre e esclarecida.
XIII – O consentimento a que se refere o artigo 38.º do Código Penal não abrange os direitos salvaguardados pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b).
XIV – O crime de violação agravado pressupõe o constrangimento da vitima por um dos meios previstos no n.º 2 do artigo 164.º do Código Penal e a existência de um nexo causal entre a prática dos actos sexuais em causa e o meio utilizado para alcançar esse fim.
XV – Violência, para efeitos do n.º 2 do artigo 164.º do Código Penal, é «apenas o uso da força física … destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. … Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso … a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima».
XVI – Com a agravação da pena do crime de violência doméstica da alínea a) do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal o legislador quis censurar de forma mais grave os casos de violência doméstica praticada num espaço confinado, subtraído a olhares alheios, por tal «enquadramento» favorecer a acção do agressor e dificultar a existência de testemunhas.

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