Simulação. Caso julgado formal. Impugnação da decisão de facto. Ónus da prova. Inversão do ónus da prova. Prova documental

SIMULAÇÃO. CASO JULGADO FORMAL. IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO. ÓNUS DA PROVA. INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA. PROVA DOCUMENTAL

APELAÇÃO Nº 4080/17.1T8VIS.C1
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Data do Acórdão: 12-11-2024
Tribunal: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Legislação: ARTIGOS 417.º, 620.º, 621.º, 640.º DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL, 344.º N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL E 211.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE REGISTO CIVIL

 Sumário:

I – Uma decisão ofende o caso julgado quando ela contraria outra decisão – quando a questão ou questões decididas por uma e por outra são idênticas/ o caso julgado constitui-se e produz efeitos nos precisos limites e termos em que julga -, proferida no mesmo ou noutro processo, já transitada em julgado, que tenha força obrigatória em relação às partes, sendo que o caso julgado formal se reporta às decisões recorríveis relativas a questões de carácter processual, tendo apenas força obrigatória dentro do processo onde são proferidas.
II – Por força deste instituto fica o juiz impedido de, no âmbito do mesmo processo, alterar aquilo que já foi decidido; fica também impedido de contrariar decisões já transitadas. Resulta, assim, que devido ao caso julgado formal, deve o juiz respeitar as decisões proferidas no processo e seus apensos ou incidentes, ainda que respeitantes a questões de natureza meramente processual – o caso julgado formal constitui uma exigência do conceito de processo, enquanto conjunto encadeado de atos, bem como da necessidade da estabilização de tais atos do mesmo decorrentes, essencial à realização das finalidades do processo.
III – O caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença ou no acórdão, e não sobre a respetiva motivação, sobre as razões que determinaram o juiz, as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar aquela conclusão final.
IV – O objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará, em parte, os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova.
V – Se o recorrente entende que o tribunal a quo valorou indevidamente meios de prova e, em contraponto, atendeu indevidamente a outros que não mereciam credibilidade, errando assim na formação da sua livre convicção, não lhe basta esgrimir a sua própria convicção para procurar descredibilizar os meios de prova que foram valorados pelo julgador, antes lhe cumprido evidenciar as razões que revelam o erro, seja por ter decidido ao arrepio das regras da experiência, ou por contrariar princípios de racionalidade lógica, ou por ter descurado quaisquer circunstâncias com influência relevante naquele processo de valoração da prova – para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.
VI – O artigo 344.º n.º 2 estabelece que há inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, ou seja, quando tal prova, no caso dos autos, for o único meio de provar a intencionalidade subjacente à transmissão da fração autónoma designado pela letra AZ por intermédio de escritura pública e à cessão de quotas celebrada e o efetivo pagamento do preço fixado em tais negócios e, tal recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova.
VII – A inversão do ónus da prova não decorre automaticamente do não cumprimento do dever de junção de documentos, alegadamente em poder da parte contrária. Exige-se para o efeito que uma das partes cause culposamente a impossibilidade de prova dos factos cujo ónus da prova incide sobre a outra por, como nos ensina José Lebre de Freitas – Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, página 409 -, “não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (…) já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos”.
VIII – Não existindo esta impossibilidade, mas mera dificuldade na produção de prova, a consequência para a falta de colaboração, passará pelo sancionamento da parte faltosa nos termos do disposto art.º 417 nº2, 1ª parte e pela livre apreciação da prova produzida, tendo em conta a dificuldade que o comportamento faltoso trouxe à parte onerada – neste preciso sentido vide Nuno Alexandre do Rosário Jerónimo Pires, A inversão do ónus da prova devido a impossibilidade de prova culposamente causada (art.344º/2 CC), pág. 15, disponível online in https://sousaferro.pt/wp-content/uploads/2020/06/Invers%C3%A3o-por-impossibilidade-culposamente-causada-NUNO-SALPICO.pdf.
IX – Em segundo lugar, o ónus da prova não serve para fundamentar a decisão de facto; ele funciona em sede de aplicação do direito para resolver a dúvida emergente da circunstância de um determinado facto não ter resultado provado, resolvendo essa dúvida contra a parte que estava onerada com o ónus de prova.
X – Significa isso, portanto, que, caso estivesse aqui em causa uma verdadeira inversão do ónus de prova, os factos em causa não seriam julgados provados (como foram) porque não é essa a função do ónus de prova e o que sucederia é que, em sede de aplicação do direito, concluir-se-ia pela existência de simulação porque, apesar de ela não ter resultado provada, cabia aos réus o ónus de provar que ela não havia existido.
XI – O que sucede, é que a prova da simulação – a cargo da Autora – é particularmente difícil e essa dificuldade tem que ser ponderada ao nível da prova necessária para fundar a nossa convicção que, na impossibilidade de fazer prova directa, terá que se basear em indícios. E a circunstância de os Réus não terem junto documentos comprovativos do pagamento e de alegarem que o fizeram em dinheiro é, nosso entendimento – que a 1.ª instância leva à sua motivação da matéria de facto -, mais do que suficiente para concluir pela prova dos factos em questão, por não ser minimamente credível e razoável que tivessem pago aquele valor mediante entrega em mãos de valor monetário, tanto mais que não existe a mínima prova que ateste ou indicie esse facto.
XII – Vem sendo entendido que, pelo menos em processo civil, o estado civil ou o parentesco podem alcançar-se mediante acordo das partes ou confissão, sempre que estes factos jurídicos não constituam o “thema decidendum”, como numa situação de responsabilidade contratual.
(Sumário elaborado pelo Relator)

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