Intervenção do Presidente do TRC de abertura do Curso de Formação Contínua «Reforma do Sistema de Recursos»
Intervenção de abertura no
Curso de Formação Contínua «Reforma do Sistema de Recursos»
organizado pelo Centro de Estudos Judiciários, no âmbito do centenário do TRC, no Salão Nobre da Relação de Coimbra, em 22 de Janeiro de 2019
Luís Azevedo Mendes
Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra
– Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, Emérito Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
– Senhor Conselheiro António Martins, Senhores Professores Rui Pinto e Damião da Cunha e Senhores Desembargadores Manuel Capelo, António Gama e Maria José Costa Pinto, também nossos conferencistas de hoje
– Senhor Dr. Paulo Guerra, director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários
– Senhores Conselheiros, Desembargadores, Procuradores Gerais Adjuntos e Professores presentes, em especial Senhor Professor Alves Correia, membro do Conselho Superior da Magistratura
– Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto e Senhora Vice-Presidente da Relação de Coimbra
– Senhora Procuradora-Geral Distrital de Coimbra
– Senhoras e Senhores participantes
1. Na ocasião da abertura deste Colóquio sobre a reforma do sistema de recursos, quero agradecer, em primeiro lugar, ao Centro de Estudos Judiciários que a promove, acolhendo um tema da minha sugestão e no âmbito das comemorações do centenário da Relação de Coimbra.
Agradeço, também, em meu nome e no da Relação, a presença de todos os distintos conferencistas e demais participantes presentes.
2. Senhor Conselheiro Henriques Gaspar
À ideia deste Colóquio presidiu uma ideia de aperfeiçoamento do sistema de recursos. Não se trata de apresentar uma reforma, nem sequer algum estudo que já haja sobre uma reforma, mas trata-se antes de discutir problemas existentes que concitam a necessidade da reforma e, porventura, apontar um ou outro caminho em áreas diversas, da cível, à penal e à laboral, mas também noutras como a do Tribunal de Contas tão pouco divulgada nos meios judiciais.
Ao longo dos últimos anos, a V. Ex.ª enquanto presidente do Supremo Tribunal de Justiça, bem como ao Bastonário Guilherme Figueiredo, habituámo-nos a ouvir constantes palavras de aviso sobre o tema que hoje vamos tratar e reflexões muito profundas sobre as insuficiências presentes e sobre o modo de as superar. Muito obrigado por esses estímulos. Temos todos a obrigação de ponderar tais palavras e não fazer delas palavras vãs. E por isso aqui estamos.
Ponderar, por exemplo, adequados mecanismos para a criação e fixação da jurisprudência firme; nas cautelas e preocupações com um, porventura, excessivo sistema de “filtragem” dos casos que podem ser examinados pelo Supremo Tribunal de Justiça; ponderar meios de reacção extraordinários ou de amparo para examinar alegações de violação de direitos fundamentais; um regime do recurso em matéria de facto mais equilibrado, ante a actual desproporção, à frente dos olhos, face aos resultados esperados no remédio para erros de julgamento; ou, ainda, identificar formulações adjectivas disfuncionais que entorpecem a fluidez do exercício dos recursos e que podem ir desde as custas judiciais a listas codificadas de prazos de complicada decifração.
2. Meus senhores e minhas senhoras
Muitas serão, certamente, as ideias que hoje aqui serão lançadas.
Não sou conferencista no Colóquio, mas permitam-me que neste breve momento de abertura – e já que estamos num tribunal da Relação – aproveite para transmitir em poucas palavras uma só questão relacionada com a segurança da jurisprudência e do direito, segurança sem a qual os recursos se tornam miragens de jogo incerto. Ou, mais concretamente, relacionada com o perigo de uma excessiva fragmentação ou balcanização da jurisprudência das Relações, para usar as expressões muitas vezes usadas pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
Os tribunais da Relação julgam hoje definitivamente bem mais de 90% dos casos que ultrapassam o patamar decisório dos tribunais de comarca, tenho-o lembrado muitas vezes. Devem ocupar, por isso, um lugar absolutamente central na realização do direito, na definição da certeza e da segurança do direito. Mas conseguem confiadamente alcançar essa definição no caso em que sobre a mesma questão surgem diferentes posições entre distintas Relações ou até na mesma Relação?
Numa resposta a essa questão, diria que não o conseguem, nem podem conseguir, desde logo porque não podem auto-activar um meio de fixar jurisprudência uniformizadora, ao contrário do que sucede com o Supremo Tribunal de Justiça que o pode fazer, convocando o pleno, no recurso ampliado de revista, por iniciativa do presidente do tribunal, mediante proposta do relator, dos adjuntos, dos presidentes das Secções ou até do Ministério Público ainda que não seja parte.
É certo que no mesmo supremo tribunal podem sempre as partes – agindo à margem da iniciativa oficiosa – socorrer-se dos meios excepcionais de recurso com fundamento em o acórdão da Relação estar em contradição com outro, já transitado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito e idêntica possibilidade existe no processo civil e no processo penal.
Todavia, esse processo de uniformização de jurisprudência é lento e fica dependente da iniciativa e do custeio das partes. Não é uma possibilidade que possa ser auto-activada pelos juízes das Relações confrontados com uma divisão jurisprudencial persistente e tanto mais danosa quanto verificada em casos de massa, como tantas vezes acontece.
Não defendo que nas Relações seja possível convocar o respectivo pleno para uniformizar de forma vinculante ou quase-vinculante. O resultado seria inútil para o conjunto dos operadores por ser de mero efeito local e não generalizável para o conjunto nacional. Mas defendo que haveria vantagem em permitir que cada Relação, mediante deliberação de um colectivo alargado, com a chancela do respectivo presidente, sem custos para as partes, pudesse ela própria identificar divisões com relevo suficiente e pedir ao STJ uma tomada de orientação uniformizadora, podendo mesmo essa proposta ter efeito prejudicial à decisão final do caso que a suscita e até decisão orientadora do STJ.
O STJ deve assumir uma função primacial de uniformização de jurisprudência e só a ele, nos tribunais judiciais, deve caber essa função oficial, respeitando a sua tradição de tribunal para remédio extraordinário e valorizando-a.
No actual sistema de recursos, o STJ é cada vez mais um tribunal de instância, entendendo isto como instância de julgamento. Nas revistas ordinárias, ainda que limitado à apreciação de direito, é a terceira instância de julgamento ou mesmo a segunda, nos casos dos recursos per saltum.
Figurino esse, de instância de julgamento, que ocorre desde 1926, não há muito tempo portanto, quando pelo decreto 12.353, de 22 de Setembro, por iniciativa do Ministro da Justiça Manuel Rodrigues, se acabou em definitivo com o sistema de cassação, inspirado no modelo francês e acolhido pela Constituição de 1822, a mesma que criou o Supremo Tribunal de Justiça. Nesse sistema de revista, com semelhanças com a revista das Ordenações para o Desembargo do Paço, esta era concedida ou negada e se concedida obrigava a um reenvio para a Relação que assumia, ela sim e não o Supremo, nova instância de julgamento.
O Supremo Tribunal, no entanto, é muito mais necessário para o conjunto das instituições jurídicas como centro uniformizador do que como instância de julgamento.
Terminada a figura dos assentos do STJ – herdada dos que eram proferidos no antigo regime pela Casa da Suplicação e mesmo pelas demais Relações do reino (Porto, Goa, Baía e Rio de Janeiro) até à Lei da Boa Razão de 1769 que impôs que só os assentos da Casa da Suplicação teriam força vinculativa -, a uniformização de jurisprudência mereceria outra dinâmica proactiva, na minha opinião, estimulada por mudanças legislativas adequadas.
E se para essa dinâmica fossem chamadas as Relações em interacção com o STJ, melhor serviço seria prestado à legítima aspiração a decisões jurisdicionais coerentes entre si, na interpretação e aplicação do direito constituído.
Haveria uma nova atenção, não só no STJ, mas também nas Relações, introduzindo um novo foco funcional positivo na vertente da discussão dos casos que serve a construção de visões comuns e referências jurisprudenciais sólidas.
3. Senhoras e Senhores
Manda o programa que me cale para além dos oito minutos que me garantiram previamente o uso da palavra para tentar expor a ideia que aqui deixo, uma das muitas e bem mais interessantes que serão hoje apresentadas.
A todos desejo uma óptima e agradável sessão de trabalho nesta centenária Relação.
Muito obrigado pela vossa atenção.