Responsabilidade civil extracontratual. Estado. Erro judiciário. Sociedade. Desconsideração da personalidade jurídica
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL. ESTADO. ERRO JUDICIÁRIO. SOCIEDADE. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
APELAÇÃO Nº 136/14.0TBNZR.C1
Relator: ALEXANDRE REIS
Data do Acordão: 03-11-2015
Tribunal: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL
Legislação: ARTºS 13º E 14º DA LEI 67/2007, DE 31/12; 483º C. CIVIL.
Sumário:
- O regime próprio da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário, consagrada pelo art. 13º da Lei 67/2007, de 31/12 (RRCEE), é justificado pela especificidade da função jurisdicional, em relação às demais incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que se realça o sistema de recursos.
- Tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela necessidade de contenção do direito à indemnização e da imposição de limites.
- Nessa senda, está excluída a responsabilidade do Estado por actos de simples interpretação do direito e valoração dos factos, com uma intenção prática de uma racionalidade prático-normativa, porque inseridos na essência da especificidade da função jurisdicional, que, por isso, deve ser salvaguardada.
- No caso, a matéria indiciada permitiria, fundadamente, concluir, em face da situação concreta, que era o 1º requerido quem, sem aparecer como administrador ou gerente (“homem oculto”), servindo-se do nome do filho, ou seja, actuando através de pessoa fictícia (“homem de palha”), sempre deteve o domínio dos factos e o controlo efectivo da sociedade e que esta apenas serviu como “testa de ferro” para aquele poder desenvolver a respectiva actividade e pôr o seu património a salvo dos credores, actuando através de um gerente ficticiamente designado.
- Assim sendo, ao reconhecer a existência de abuso da autonomia patrimonial da sociedade, em prejuízo dos credores, mais do que plausível, foi defensável a abordagem fáctico-jurídica que a sra. Juíza engendrou, obtendo, com autonomia e uma racionalidade (também) prático-normativa, um resultado que, não sendo singular nem o único possível, de modo algum, pode ser apodado de “peregrino”.
- Por isso, a desconsideração (inversa) ou levantamento da personalidade jurídica da sociedade A…, por ser uma solução legítima da questão submetida à apreciação da sra. Juíza, não afectou a decisão proferida de manifesta ilegalidade, com a restritiva qualificação que tem este conceito – designadamente sobre o grau da respectiva intensidade –, que é exigida pelo requisito específico da responsabilidade civil exercida nesta acção, traduzido no erro judiciário.
- A concreta actuação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de sociedades ainda padece de falta de rigor dogmático, desde logo porque não apela “directamente” a concretas normas jurídicas – antes a princípios, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade – e é controversa, porquanto se manifestam entendimentos não inteiramente convergentes quanto à formulação dos respectivos requisitos. Além disso, a decisão judicial aqui reputada de ilícita, por errada, tem que ser vista sem omitir que o juiz não dispõe no seu labor de uma ciência exacta que o oriente e, sobretudo, no concreto contexto de uma figura jurídica em elaboração, característica que, perpassando ou sendo inerente ao direito em geral e à realidade dinâmica em que o mesmo intervém, sobressai ainda mais no campo desta teoria.
- O reconhecimento do fundamento do direito à reparação da responsabilidade do Estado pelos danos causados por erro judiciário – ou seja, de que a decisão de primeira instância seria totalmente estranha à situação jurídica em apreço, fruto de erro de julgamento, manifesto e indesculpável – teria de ser patenteado pelos termos da própria decisão revogatória proferida no processo judicial em que, alegadamente, fora cometido o erro. Essa opção legislativa, apesar do seu carácter restritivo, compatibiliza adequada e proporcionadamente o instituto da responsabilidade civil com a garantia da segurança e da certeza jurídica do caso julgado e, por isso, não cerceia arbitrariamente o princípio da responsabilidade do Estado nem o princípio da igualdade.
- Sem mais, a mera revogação da decisão, em sede da sua reapreciação pela via do recurso pelo tribunal hierarquicamente superior, a que o julgamento da questão foi deferido, sobrepondo-se ao de primeira instância, significa, apenas, que foram oferecidas duas diferentes apreciações fáctico-jurídicas – ambas formadas com base nos elementos factuais indiciariamente demonstrados no processo, com sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas no quadro normativo vigente, como manifestações da autonomia quanto ao “dizer o que diz o direito” e do princípio da independência dos juízes – bem como duas diferentes soluções jurídicas para uma mesma situação, ambas igualmente legítimas – ainda que só uma tenha prevalecido, como decorrência da forma como o exercício do poder judicial está estruturado – e não, necessariamente, que a decisão de 1ª instância estivesse errada, muito menos, manifestamente.
- No caso, pelo contrário, não se constata que a decisão judicial revogada fosse claramente desrazoável, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de desconhecimento do direito e de uma actuação com culpa grave, ou seja, que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso nunca teria julgado por tal (inadmissível) forma.