Estado. Responsabilidade civil. Função politica. Factos ilícitos. Independência das antigas colónias. Prescrição
ESTADO. RESPONSABILIDADE CIVIL. FUNÇÃO POLITICA. FACTOS ILÍCITOS. INDEPENDÊNCIA DAS ANTIGAS COLÓNIAS. PRESCRIÇÃO
APELAÇÃO Nº 991/14.4T8VIS.C1
Relator: ALEXANDRE REIS
Data do Acordão: 03-11-2015
Tribunal: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL
Legislação: ARTº 22º DA CRP; DL 48.051, DE 21/11/1967.
Sumário:
- Nesta acção os AA. formulam o pedido, fundado na responsabilidade civil do R Estado Português pelo exercício da sua função política, de que este repare o valor dos danos alegadamente sofridos por cada um deles em consequência da actuação do demandado no âmbito do processo de descolonização de Angola, cujo território foram forçados a abandonar, por forma a salvaguardar as respectivas vidas e integridade física, aí deixando todos os seus bens e perdendo a estabilidade da respectiva situação familiar.
- Por assim ser, só são concebíveis como ilícitos os factos imputáveis ao R que se possam caracterizar como reais consumações do incumprimento do processo conducente à descolonização já que o desiderato por esta prosseguido – há muito reclamado por princípios de direito internacional consensualmente aceites pela comunidade dos países –, do ponto de vista da sua licitude, não pode ser confrontado com princípios consagrados na Constituição de 1933 claramente derrogados pela nova ordem jurídico-constitucional desencadeada pela Revolução de 25 de Abril de 1974 e plasmada particularmente na Lei Constitucional nº 7/74, de 27/7, como era o que exprimia a ideia de que a independência das então designadas províncias ultramarinas se concretizava na independência da pátria.
- Em face da matéria de facto alegada pelos AA., foi aquando do seu êxodo forçado do território de Angola que os mesmos aí deixaram os seus bens, ficando impedidos de os usufruir e possuir, e perderam a estabilidade da respectiva situação familiar. Portanto, na perspectiva dessa alegação, tanto os factos putativamente ilícitos e geradores dos danos cuja reparação é por eles pedida como os próprios danos consolidaram-se ou concretizaram-se definitivamente enquanto aquele território esteve sob a administração do Estado Português, ou seja, até 11/11/1975, data que terá de balizar a apreciação dos pressupostos da questionada excepção de prescrição.
- Não é imputável ao Estado Português a invocada ruptura, em si mesma, do compromisso que aquele logrou fazer consagrar no Acordo de Alvor no sentido de os 3 movimentos então designados de libertação nacional de Angola (FNLA, MPLA e UNITA) respeitarem os bens e os interesses dos portugueses domiciliados em Angola, nem os danos depois produzidos por um novo Estado, soberano e independente, decorrentes da desapropriação dos bens dos AA, efectuada sem indemnização.
- O que ao Estado Português poderia ser imputado seria apenas o eventual incumprimento do princípio da protecção diplomática – traduzido na «garantia internacional tradicional que é um direito do Estado (“dominus litis”) que supõe uma acção contra o Estado violador, sem prejuízo do particular poder sempre processar o Estado autor da violação contra tal violação» – i. é, do dever de ter apoiado, por via diplomática, a eventual reacção que os AA, então, tivessem adoptado perante esse Estado, enquanto autor da desapropriação, sendo certo que uma tal reacção não vem alegada.
- Mas o momento que releva para o início da contagem do prazo da prescrição relativa ao direito em concreto exercido nesta acção, em nada depende da circunstância de poderem perdurar até à actualidade tanto os danos como as alegadas faltas de apoio do Estado Português, por via diplomática, a qualquer eventual iniciativa dos AA. perante o Estado que alegadamente os desapropriou dos bens que em 1974/1975 foram forçados a deixar em Angola, pretensamente devido à imputada actuação ilícita do R.
- A prescrição de direitos de crédito com tradução meramente patrimonial originados em ofensa ao conteúdo do direito de propriedade não implica a denegação do respeito e da garantia de efectivação de direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, não obstante a correspondente responsabilidade extracontratual do Estado ter como fundamento constitucional o princípio que, actualmente, flui directamente do disposto no artigo 22º da CRP – estando, na data dos factos em apreço, apenas regulamentado na lei ordinária através do DL 48.051 de 21/11/1967 – e o direito de propriedade ser constitucionalmente garantido.
- A fim de poder admitir a imprescritibilidade do direito que invocam e para que o paralelo com a situação dos judeus vítimas do holocausto nazi não pudesse ser considerado excessivo, para não dizer abusivo, teriam os AA. de se propor demonstrar factos circunstanciados – que, obviamente, não alegaram – integrativos duma actuação por parte do Estado Português orientada pelo desígnio de consumar o extermínio dos portugueses – judeus ou não – então residentes em Angola.
- Perante os contornos da matéria alegada pelos AA nunca se poderia vir a demonstrar que o Estado Português ou os seus comissários cometeram quaisquer actos que, à luz dos princípios de direito internacional, pudessem ser catalogados como ilícitos (crimes) contra a humanidade ou graves violações dos direitos do homem, nem, muito menos, que os próprios AA tivessem sofrido quaisquer actos dessa natureza praticados pelo demandado ou pelos seus comissários, nessa qualidade, sendo sabido que, para que assumissem essa classificação, os actos imputados teriam de possuir, pelo menos, seis características: a) desumanos (assassinatos, extermínios, desaparecimentos etc.); b) generalizados ou sistemáticos; c) dirigidos à população civil; d) durante conflito armado; e) conformes a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promovam essa política; f) com conhecimento desses agentes.
- Do texto da que veio a ser a efectiva opção do legislador consagrada no art. 40º da Lei 80/77 de 26/10 consta, de modo claro, que o Estado Português não assumiu a responsabilidade pelas indemnizações que fossem devidas aos ex-titulares de direitos sobre bens nacionalizados ou expropriados pelos novos Estados dos territórios das ex-colónias, limitando-se proclamar que tais bens estão sujeitos ao regime da indemnização fixado segundo a lei do Estado da sua localização, a pagar pelo Estado que procedeu à respectiva privação, presumindo-se a existência de direito à indemnização, em conformidade com os princípios gerais de direito.
- Por assim ser, essa norma também nunca poderia ter criado a aparência jurídica de que inexistia ou ao menos seria ineficaz o direito a que os AA agora se arrogam, baseado na suposta actuação ilícita do Estado Português enquanto administrou a colónia de Angola, o que teria impedido aqueles de exercerem anteriormente a sua pretensão.
- Também a recomendação do Estado Português feita aos cidadãos provenientes da ex-colónias, publicitada através de anúncios em jornais, para elaborarem listas dos bens perdidos, só pode ser interpretada com o sentido de que o anunciante apenas iria diligenciar junto do Estado que sucedeu às entidades que se haviam comprometido, em Alvor, a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses domiciliados no território, para apoiar diplomaticamente as iniciativas que os cidadãos nacionais encetassem para obter daquele Estado o respeito dos seus direitos e não o sentido de que estava a atribuir-se a responsabilidade autónoma exigida nesta acção.
- Por isso, atendendo à apontada clareza dos propósitos manifestados pelo Estado Português, tanto no caso do citado art. 40º como no dos anúncios, não se divisa, onde poderia residir a sugestão ou artifício empregue com a consciência de induzir os AA em erro e, assim, poder configurar o dolo daquele, em qualquer das suas modalidades,
- Nenhum dos actos enunciados pelos AA. e imputados ao Estado Português traduz o (inequívoco) reconhecimento deste, expresso ou tácito, do direito de indemnização, que aqueles pretendem ver satisfeito nesta acção: o art. 56º da Lei 127-B/97 de 20/12 (Orçamento Geral do Estado para 1998), a criação do Gabinete de Apoio aos Espoliados (Resolução do Conselho de Ministros nº 13/92) e o ofício de 6.1.1993 do chefe de gabinete da secretaria de Estado para a Cooperação, tal como as já faladas inventariação dos bens “espoliados” ou a sugerida promessa de concessão de apoio diplomático, têm apenas «a finalidade de propor soluções para questões pendentes, que desde o tempo da descolonização se encontram sem solução definida, face ao comportamento dos governantes dos novos Estados soberanos surgidos nesses territórios», sendo certo que a ajuda possível aos desalojados das ex-colónias careceria de disponibilidade orçamental.
- E nenhum de tais actos foi idóneo a gerar nos AA. a legítima crença de que o Estado Português lhes pagaria, mesmo sem a propositura da acção, as indemnizações a cujo direito se arrogam, sendo essa confiança, agora, infundadamente retirada com a invocação da prescrição, que, assim, não é configurável como abusiva da boa-fé ou dos bons costumes.
- A invocação da prescrição pelo Estado, representado pelo Ministério Público, é legítima porque permite que possa ser atingido, em conformidade com os ditames da legalidade democrática, o interesse de ordem pública dirigido, fundamentalmente, à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade subjacentes a tal instituto, uma vez ponderada a inércia dos titulares do direito exercitando.