Recurso interlocutório. Irregularidades processuais. Nulidades processuais. Vícios do artigo 410.º n.º 2 do c.p.p.. Impugnação da matéria de facto. Crime de tráfico de pessoas. Crime de auxílio à imigração ilegal – normas aplicáveis. Crimes de ameaça e coacção agravadas
RECURSO INTERLOCUTÓRIO. IRREGULARIDADES PROCESSUAIS. NULIDADES PROCESSUAIS. VÍCIOS DO ARTIGO 410.º N.º 2 DO C.P.P.. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO. CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS. CRIME DE AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL – NORMAS APLICÁVEIS. CRIMES DE AMEAÇA E COACÇÃO AGRAVADAS
RECURSO CRIMINAL Nº 12/20.8ZRCBR.C1
Relator: PAULO GUERRA
Data do Acórdão: 22-11-2023
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 1
Legislação: ARTIGOS 183.º, N.ºS 2 E 3, 185.º-A E 198.º-A DA LEI N.º 23/2007, DE 4 DE JULHO/ENTRADA, PERMANÊNCIA, SAÍDA E AFASTAMENTO DE ESTRANGEIROS DO TERRITÓRIO NACIONAL
ARTIGOS 22.º E 23.º DA LEI N.º 130/2015, DE 4 DE SETEMBRO/ESTATUTO DA VÍTIMA; ARTIGO 2.º DA LEI N.º 93/99, DE 14 DE JULHO/LEI DE PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS; ARTIGOS 67.º-A, N.ºS 1, ALÍNEA B), E 3, 119.º, ALÍNEA C), 120.º, 123.º E 318.º, N.ºS 1, 5, 6 E 8 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
1. No artigo 23º do Estatuto da Vítima (Lei nº 130/2015, de 4/9) reconhece-se a possibilidade de recurso à videoconferência ou à teleconferência, quando os depoimentos e declarações das vítimas especialmente vulneráveis implicarem a presença do arguido e tal se revelar necessário para evitar constrangimentos – neste caso, a vítima é acompanhada por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo Ministério Público ou pelo tribunal.
2. O seu nº 2 não é só aplicável em casos de crianças inquiridas, entendendo-se que não permite a lei que se faça esta destrinça, não se duvidando que existem muitas testemunhas vítimas maiores de idade que carecem desse acompanhamento técnico na sua inquirição judiciária, tendo sido essa a intenção óbvia do legislador.
3. O princípio geral em sede de irregularidades consiste em considerar que o acto irregular só é inválido quando o desvio à legalidade processual afectar o seu valor.
4. Para o efeito de determinar quando é que uma irregularidade afecta o valor do acto, a doutrina costuma distinguir os elementos necessários dos elementos úteis, cuja falta dá origem a vícios essenciais e marginais, respectivamente, urgindo, pois, procurar, de forma casuística, qual a função desempenhada por um determinado elemento: se esse elemento for essencial o acto é inválido; se apenas for útil, o acto, apesar de imperfeito, não é inválido.
5. A falta de nomeação de um técnico do artigo 23º/2 seria apenas um elemento eventualmente útil e nunca essencial à validade das inquirições em causa – as vítimas não pediram qualquer tipo de acompanhamento nem se mostraram minimamente constrangidas por deporem contra o homem que os traficou.
6. O legislador acabou por mudar a redacção do nº 5 e por acrescentar um nº 8 ao artigo 318º do CPP, entendendo que a expressão “equipamento electrónico que permita a interação, por meio visual e sonoro, em tempo real”, ao invés de “teleconferência”, era preferível “por se tratar de uma expressão mais abrangente, que possibilita a utilização de tecnologias já existentes e cujas características técnicas não são reconduzíveis ao vocábulo «teleconferência»”.
7. Portanto, a partir de 2016, passou a abarcar-se todos os meios de transmissão à distância, ajustando-se a lei às evoluções tecnológicas sempre prementes e emergentes que permitem mais e melhor qualidade de som, imagem, o tal maior realismo, equiparável a situações de presença física.
8. A leitura que fazemos do nº 8 do citado artigo 318º do CPP faz-nos concluir que «o local da sua residência» é a residência do declarante, entendida como centro de vida (se a lei quisesse referir-se a tribunal ou local público tê-lo-ia dito, como disse nos nºs 1 e 6 da norma).
9. Esta solução legal do nº 8 do artigo 318º do CPP configura, afinal, uma alternativa válida e perfeitamente susceptível de permitir ao juiz da causa apreciar das condições da prestação de declarações, pela percepção audiovisual que da mesma tem no decurso da diligência, podendo avaliar, adequadamente, da credibilidade ou não do depoimento assim prestado, estando garantida a imediação.
10. A transmissão à distância dos depoimentos prestados sem prejudicar a contextual visibilidade do declarante e o reconhecimento da sua fisionomia por todos os que intervêm ou assistem ao ato processual não se encontra ferido de um insuperável juízo de censura do ponto de vista constitucional, não havendo aqui qualquer violação do princípio da imediação em sentido formal ou do princípio do contraditório (continuou a existir, sem mácula, o direito de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação ou defesa).
11. O art. 119º, al. c) do CPP comina com a sanção da nulidade «a ausência do arguido», nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência, sendo o arguido pessoa colectiva representado por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem.
12. Se o arguido estiver no processo representado por quem não tenha poderes de representação deve considerar-se que se verifica a nulidade do art. 119º, al. c).
13. Tratando-se de nulidade insanável, a consequência é que a irregularidade da representação não pode ser sanada nos termos em que o pode ser no processo civil, só ficando sanada com o trânsito em julgado da decisão final.
14. Se a pessoa colectiva foi condenada e não interpôs recurso, haverá caso julgado em relação a essa condenação – é o que ocorre nas situações de co-autoria, em que um dos co-autores não interpõe recurso, falando-se, a esse propósito, de caso julgado sob condição resolutiva (sem prejuízo de o arguido não recorrente poder beneficiar da procedência de recurso de co-arguido recorrente).
15. No caso das pessoas colectivas, não existe sequer comparticipação criminosa, antes se falando de responsabilidade penal cumulativa entre a pessoa colectiva e a pessoa singular agente do crime (a responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes).
16. Numa situação em que a acusação considerou que os factos imputados aos arguidos preenchiam os elementos típicos de dois crimes diferentes, em concurso aparente (em que as normas incriminadoras em presença concorrem só na aparência, excluindo uma a outra, em função do que a subsunção ao crime de auxílio à imigração ilegal prevalece sobre a do crime de utilização de atividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal), se o tribunal recorrido considerasse que os factos provados não preenchiam o primeiro dos indicados ilícitos, então estava obrigado a analisar se aqueles se subsumiam ao outro crime, apenas não punível com autonomia por se encontrar em relação de concurso aparente que, no entanto, nesse caso, deixava de se verificar.
17. A norma aplicável na condenação do recorrente, em relação a todos os cidadãos identificados nos factos dados como provados e nos termos em que o foram, é a correcta – a do artigo 183º, nº 2 e 3 (por causa da agravação na situação de dois deles) – da Lei nº 23/2007 e nunca o artigo 198º-A ou mesmo o art. 185º-A da mesma Lei, não havendo qualquer erro do julgador na identificação e aplicação da norma penal.
18. Estamos longe de uma contra-ordenação (que convive apenas com uma situação isolada de utilização de cidadãos estrangeiros nas condições avançadas no artigo 198º-A de tal diploma) e do crime do artigo 185º-A (que acrescenta o «de forma habitual» ao tipo de contra-ordenação acima referida) – neste nosso caso, não é um mero utilizar que está em causa, é muito mais do que isso. Não estamos a falar de uma mera utilização do trabalho destes brasileiros em Portugal mas de uma sociedade e de um indivíduo que, de forma muito directa e consequente, favoreceu e facilitou a permanência destes homens em Portugal, estando como estavam ilegais.
(Sumário elaborado pelo Relator)