Obrigação natural. Doação em cumprimento de dever moral ou social. Doação remuneratória. Proposta de doação. Aceitação pelo donatário
OBRIGAÇÃO NATURAL. DOAÇÃO EM CUMPRIMENTO DE DEVER MORAL OU SOCIAL. DOAÇÃO REMUNERATÓRIA. PROPOSTA DE DOAÇÃO. ACEITAÇÃO PELO DONATÁRIO
APELAÇÃO Nº 3692/22.6T8LRA .C1
Relator: MOREIRA DO CARMO
Data do Acórdão: 18-06-2024
Tribunal: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA
Legislação: ARTIGO 552.º, 1, D), 2.ª PARTE, DO CPC; ARTIGOS 217.º, 1; 231.º; 232.º; 270.º; 941.º; 945.º E 1154.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
i) Importa não confundir uma obrigação natural com a doação ou deixa em cumprimento de um dever moral ou social; no primeiro caso, há a consciência de que se cumpre uma obrigação; no segundo, a de que se faz uma liberalidade;
ii) A doação remuneratória também não se pode confundir com a obrigação natural; na doação remuneratória há o animus donandi, a intenção de fazer uma liberalidade, de enriquecer o património do donatário à custa do património do doador, ao passo que, no cumprimento de obrigação natural, tem-se em vista evitar um empobrecimento imoral ou injusto;
iii) O que caracteriza as doações remuneratórias é a circunstância de não terem os serviços que pretendam remunerar a natureza de dívida exigível; não há uma obrigação por parte do doador em relação ao donatário, sobressaindo o princípio de que há doação sempre que haja liberalidade e espontaneidade, liberalidade essa que não representa uma solutio nem uma dação em cumprimento;
iv) O facto de o doador ter ficado grato pela recepção do serviço, leva-o a querer remunerar quem lho prestou, ainda que em termos jurídicos não seja obrigado;
v) Na doação remuneratória, o que sobressai é o espírito de gratidão e recompensa dos serviços recebidos pelo doador, existindo, pois, uma liberalidade com o escopo de recompensar;
vi) Provado que: – o montante de 5.000 € foi reconhecido pelo falecido AA como sendo devido ao A. a título de compensação pelas despesas que este suportou e pelo tempo que despendeu ao acompanhá-lo (transportá-lo) em inúmeras deslocações ao «Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra», para consultas e tratamentos médicos, uma vez que o falecido era doente (veio a falecer na sequência de um cancro no pâncreas) e não podia deslocar-se sozinho – e – o A., sobrinho e amigo do falecido AA, acompanhou-o nessas deslocações, em prejuízo da sua própria actividade profissional – tinha um pequeno estabelecimento comercial na freguesia …, Leiria, que constituía a sua fonte de rendimento e que fechava nos dias em que acompanhava o falecido a Coimbra -, apesar de este ter esposa e filho, é de concluir que o falecido AA agiu com o A. por gratidão e vontade de recompensa, ou seja com espírito donandi, por liberalidade da sua parte;
vii) Dispõe o art. 945º, nº 1, do CC, que a proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do doador. Não obstante, a tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, é havida como aceitação (nº 2). Mas se a proposta não for aceita no próprio acto ou não se verificar a tradição nos termos do número anterior, a aceitação deve obedecer à forma prescrita no art. 947º e ser declarada ao doador, sob pena de não produzir efeitos (nº 3);
viii) Daqui se retira que: a) para que se conclua o processo constitutivo do negócio jurídico, é necessária a aceitação do donatário, pois antes dela existe uma simples proposta de doação, já que o acordo de vontades é sempre elemento essencial, nos termos do art. 232º, da formação de qualquer contrato; b) a aceitação deve ter lugar, sob pena de caducidade da proposta, durante a vida do doador, não sendo necessário, porém, que ocorra no mesmo momento em que é feita a declaração do doador; c) não exige a lei que a declaração de aceitação seja expressa, pois fora do caso previsto no nº 2, deve entender-se, em regra, que a simples intervenção do donatário no acto da doação, por ex: na escritura pública, sem que este exprima o seu dissentimento, é manifestação bastante da aceitação (declaração tácita do art. 217º); d) é havida como tradição, nos termos do nº 2, a tradição para o donatário, em qualquer momento da coisa móvel doada ou do seu título representativo; e) pode a tradição verificar-se no momento da proposta ou num momento posterior, mas terá de realizar-se antes da morte do doador; f) quando a proposta não é aceita no próprio acto, ou não se verifica a tradição, a aceitação tem de obedecer, nos termos do nº 3, à forma prescrita no art. 947º e ser declarada ao doador, sob pena de ineficácia; g) por morte do declarante proponente, é derrogada a regra geral do art. 231º, dado que na doação, em face do seu cariz intuitu personae os herdeiros do doador não ficam vinculados pela proposta do autor da sucessão;
ix) Se o proponente doador faleceu em 2.12.2012, enquanto a declaração de doação ocorreu em 17.9.2012, e nesta data não se comprova que o falecido entregou a quantia de 5.000 € referida na dita declaração, nem a própria declaração, o A. não interveio nesse documento que corporiza a declaração, não aceitando, assim, expressa ou tacitamente a falada doação, nem a tradição ou aceitação por escrito ocorreu posteriormente, a falada proposta de doação, titulada por tal declaração, caducou com o óbito do declarante proponente – art. 945º, nº 1 – , e, também, eventual aceitação não produziu efeitos, atendendo a que sobre o A. impendia a obrigação de, junto do declarante e em vida deste, declarar por escrito a aceitação dos 5.000 € – nº 3 do art. 945º;
x) E por morte do declarante proponente, é derrogada a regra geral do art. 231º, dado que na doação, em face do seu cariz intuitu personae os herdeiros do doador não ficam vinculados pela proposta do autor da sucessão;
xi) Caduca a proposta de doação ou não surtindo a mesma eficácia, cai também a cláusula acessória aposta, uma condição suspensiva, extinguindo-se tal cláusula por ter deixado de existir.