Os enfermeiros e o dever de guardar, vigiar e assistir – Adélio Tinoco Mendes

 

Adélio Tinoco Mendes

 

Enfermeiro Especialista de Reabilitação
 

  GUARDAR, VIGIAR e ASSISTIR

 RESUMO: Os enfermeiros, pelo facto de serem, por excelência, prestadores de cuidados, estão expostos a todo um conjunto de situações que poderão apresentar contornos, nem sempre facilmente visíveis, de crimes tipificados na legislação vigente; escolhemos os deveres de guardar, assistir e vigiar que tanto nos dizem respeito, para abordar conceitualmente, interpretar à luz do Código Deontológico do Enfermeiro e confrontar com o Código Penal vigente no seu artº. 138º. Procuramos exemplos de situações práticas que poderão ser enquadradas neste âmbito da violaçõa dos deveres de guardar, assistir e vigiar.
Pretendemos tão só, criar alguma discussão em torno desta matéria.

 

 

 Se bem que como enfermeiros, não nos obriguemos a dominar exaustivamente conhecimentos jurídicos, parece-nos interessante que tenhamos presente alguns conceitos nesta matéria, porquanto a nossa actividade como prestadores de cuidados de saúde nos coloca numa posição que facilmente poderá levar a uma maior ou menor violação de direitos juridicamente protegidos dos utentes.

 

Pretendemos simplesmente trazer à discussão temas que nos parecem de interesse relevante na época actual, em que caminhamos no sentido da excelência no cuidar.

 

Escolhemos o art. 138º ( Exposição ou Abandono ) do Código Penal vigente na nossa ordem jurídica para ilustrar, no âmbito juridico-penal, o valor dos deveres de Guardar, Vigiar e Assistir.

 

Guardar consiste em tomar conta com o objectivo de vigiar, defender, proteger.

 

Vigiar é estar atento, com muita atenção para ver o que se passa, evitando qualquer perigo que possa ocorrer.

 

Assistir é dar ajuda moral ou material a alguém; dar assistência.

 

O ” Código Deontológico do Enfermeiro” que consta nos ” Estatutos da Ordem dos Enfermeiros “, publicados no Dec. Lei n.º 104/98 de 21 de Abril, procura assegurar que estes são efectivamente deveres dos enfermeiros enquanto entes actuantes no terreno da prestação dos cuidados de saúde. Verificamos que defender, proteger, assistir, cuidar, são deveres que se encontram no texto deste documento, em praticamente todos os artigos do 78.º ao 92.º, de uma forma que não deixa dúvidas quanto ao caracter vinculante do texto.

 

Assim, o enfermeiro deve dirigir a sua conduta no sentido de defender a liberdade e a dignidade da pessoa humana ( Art.78º n.º1); respeitar os direitos humanos na relação com os clientes ( Art. 78 nº3 b) ); proteger e defender a pessoa humana das práticas que contrariem a lei, a ética ou bem comum ( Art.79º c) ); cuidar da pessoa sem qualquer discriminação económica, social, política, étnica, ideológica ou religiosa, abster-se de juízos de valor sobre o comportamento da pessoa assistida (Art. 80º a) e e) ). O Código Deontológico do Enfermeiro vincula-nos assim, textualmente e de forma inequívoca aos deveres de guardar, assistir e vigiar, constantes no texto do Art. 138.º do Código Penal.

 

Art. 138º

 

( Exposição ou Abandono )

 

1. Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa:

 

a ) Expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se; ou

 

b ) Abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir;

 

é punido com pena de 1 a 5 anos de prisão.

 

2. Se o facto for praticado por ascendente ou descendente, adoptante ou adoptado da vitima, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

 

3. Se do facto resultar:

 

a ) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;

 

b ) A morte, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

 

O n.º 1, als. a) e b), prevê crimes que se consumam com o colocar em perigo a vida da vitima, expondo-a ( al. a) ), ou abandonando-a ( al. b) ), indicando as respectivas penas de 1 a 5 anos de prisão. O n.º 2 prevê agravamento da pena com a verificação de situações que revelem a presença de especiais características do agente, alterando-se assim o limite mínimo da pena de 1 para 2 anos, permanecendo inalterado o limite máximo de 5 anos.

 

O facto de se tratar de crimes de perigo, releva aqui na especial cautela que o legislador penal teve na fixação da moldura penal, evitando penas excessivamente pesadas.

 

Se do facto resultar o previsto no n.º 3, al. a) ( ofensas graves à integridade física ), ou al. b) ( a morte ), as penas serão de 2 a 8 e de 3 a 10 anos de prisão respectivamente.

 

È exigível para o preenchimento do tipo legal que se verifique, quanto à situação de exposição ou abandono o dolo e quanto ao resultado a negligência ou mera culpa ; o agente abandona a vitima com o conhecimento de que ela fica exposta a um perigo de que por si só não se pode defender e o resultado verificado ou seja, as consequências desse abandono, quer sejam a ofensa à integridade física grave ou a morte da vitima, surgem sem que haja vontade do agente dirigida nesse sentido.

 

O presente tipo de crime verifica-se se o agente detentor duma situação que lhe permite prever o resultado, actuou com inconsideração, não se conformando com a sua verificação. Reside aqui a diferença entre este tipo de crime e o tipo de crime de homicídio voluntário, em que o agente podendo e devendo prever o resultado, se conformou com a sua verificação, havendo neste caso dolo eventual; manifesta-se aqui e assim a diferença entre negligência consciente e dolo eventual, consoante o agente, respectivamente, não se conforma ou conforma com o resultado da sua conduta.

 

O agente, quando se conforma, resigna-se, harmoniza-se com o resultado, aceita e adapta-se à possibilidade de se verificar determinado resultado, manifestando-se assim uma conduta mais desvaliosa, compreendendo-se a existência de um tipo legal de crime diferente, com também diferente e mais pesada, moldura penal.

 

No caso da al. a) do n.º1, o agente expõe a vitima a uma situação da qual ela só por si não pode defender-se; há uma acção especifica que conduz ao resultado e essa acção é a exposição da vitima.

 

No caso da al. b) do mesmo n.º 1, o agente pratica o crime por deixar de executar os actos que poderiam evitar a verificação do tipo legal de crime; é necessário aqui que ao agente seja imputável o dever de guardar, vigiar ou assistir, dever esse que deverá radicar na lei, em contrato ou em o agente ter incapacitado a pessoa carecida. É da violação deste dever de guardar, vigiar ou assistir, e não da possível debilidade da vitima, que resulta o caracter desvalioso e censurável da conduta, ou seja, a vitima não tem que apresentar qualquer estado de debilidade, criando-se a situação de debilidade devido ao abandono a que foi sujeita, enfrentando riscos de que não lhe é possível defender-se. Quando se fala de abandono por parte do agente, pressupõe-se que a vitima permaneça no local onde se encontra; discutível é se o agente, para se preencher o tipo legal de crime tem ou não que se deslocar espacialmente, ou se simplesmente, permanecendo junto à vitima e não praticando os actos que deveriam eliminar ou minorar o perigo, é violado o dever ou deveres que na situação especifica se lhe impõem. Defende a doutrina, esta 2.ª solução pois não parece coerente afirmar o presente tipo legal de crime quando o agente se ausenta e já não quando o agente permanece junto à vitima, mas omite qualquer acto de auxilio para com aquela; a mesma solução encontrou o legislador alemão, ao considerar não necessário a deslocação espacial mas também o mínimo de prestação de auxilio à vitima e junto dela.

 

O agente, estando obrigado ao cumprimento do dever de guardar, assistir ou vigiar, se não cumprir a obrigação de guarda, assistência ou vigilância, é indiferente para o preenchimento do tipo legal de crime, que ele se ausente do local onde a obrigação deve ser cumprida ( junto à vitima ) ou que permaneça no local mas não cumpra. Assim, o técnico que deva prestar determinado cuidado e o não preste, é indiferente se se ausentou ou permaneceu junto da vitima.

 

De referir ainda que o abandono tem de ser realizado por um agente sobre o qual impenda um especial dever de guardar, assistir ou vigiar, sendo que este dever terá de ser preexistente à situação de abandono e deve estar em directa conexão com a ausência de defesa da vitima, ou seja, é fundamental que o dever que sobre o agente recai tenha por finalidade garantir o auxilio em situação de risco ou perigo em que incorra a vitima. Não basta assim que o agente possa prestar qualquer tipo de ajuda ou auxilio mas antes que lhe seja possível e deva , em virtude das suas aptidões, garantir o auxilio adequado na situação especifica. Necessário será também atender às especiais características da vitima, pois ela pode através de uma qualquer conduta, colocar-se ela própria numa situação de risco/perigo ou potenciar o risco/perigo de um eventual abandono; poderá, nesta situação, em que é a vitima que faz emergir ou potenciar os riscos do abandono ou da violação dos deveres de guardar, vigiar ou assistir, afirmar-se que este comportamento é causa de exclusão da tipicidade da conduta de abandono; ou seja, a vitima, com este comportamento levará a que não se verifique o tipo legal de crime porquanto foi ela e não o agente que criou ou potenciou os riscos? Ora, para que se possa concluir pela verificação legal do tipo de crime é necessário que :

 

A vitima fique sem defesa na directa decorrência da violação dos deveres que impendem sobre o agente e

 

A criação do perigo seja consequência dos riscos que se querem prevenidos pela existência daqueles deveres.

 

Ou seja, a violação dos deveres pelo agente deve colocar em perigo, sem defesa, a vitima, e esta vulnerabilidade deve resultar especificamente da violação desses deveres e não doutros. O perigo é criado ou potenciado em consequência do risco produzido pela violação dos deveres que impendem sobre o agente e não por qualquer outro risco, emergente da violação de qualquer outro dever.

 

Do abandono deve resultar para a vitima um risco ou agravamento de risco para a sua vida, risco esse de que ela por si só não se possa defender. Não se deverá verificar a tipicidade deste crime sempre que seja a vitima pela sua conduta ou comportamento a criar ou potenciar os riscos de que falamos, desde que, convém alertar, seja essa conduta voluntária e consciente.

 

Assim apresentam-se como exemplos:

 

O enfermeiro que alertado pelo AAM para o estado de saúde de um doente, se limita a dizer que por ele o doente pode ter alta na sequência do que o AAM coloca o doente no quarto onde ele vem a falecer, comete o crime do art. 138.º n.º1, al. b) e n.º3 al. b) do Código Penal;

 

O enfermeiro que abandona o doente que vigia e guarda enquanto espera pela realização de um exame auxiliar de diagnóstico, para ir almoçar ou tomar café, na sequência do que o doente vem a falecer, devido ao abandono, comete o crime do art. 138.º n.º 1 al. b) e n.º 3 al. b);

 

O enfermeiro que abandona o doente confuso e agitado, embora imobilizado em cama ou maca, enquanto aguarda por exame complementar de diagnóstico, vindo o doente a sofrer traumatismo grave devido a agitação e queda, comete o crime tipificado no art. 138.º n.1 al. b) e n.3 al. a).;

 

O enfermeiro que abandona o doente com intoxicação alcoólica aguda evidente, em sala sem vigilância, confiando que nada de mal sucederá e o doente irá como tantas vezes já aconteceu, melhorar por si só, vindo o mesmo a sofrer traumatismo grave devido a queda verificada em virtude desse isolamento, quando devia ser vigiado, comete o crime do art. 138.º n.º1 al. b) e n.º3 al. a), ou al. b) se vier a falecer.

 

É da facilidade com que na nossa prática diária surgem situações típicas potencialmente geradoras da prática destes crimes, que pensamos derivar a necessidade desta matéria ser discutida por e para enfermeiros.

 

Os enfermeiros, enquanto prestadores de cuidados de saúde, incorrem na possibilidade da prática de crimes tipificados no Código Penal vigente, sem que muitas vezes os seus contornos sejam facilmente visíveis por todos. Não queremos justificar aqui a máxima de que será o Código Penal a magna carta dos criminosos, mas acreditamos que será vantajoso para todos a abordagem e discussão destes assuntos desde logo em sede de (in)formação.

 

 

 

  Bibliografia

 

Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, II volume, Academia das Ciências de Lisboa e Editorial Verbo, Fevereiro 2001.

 

Dias, Jorge de Figueiredo – Comentário Conimbricence do Código Penal, parte especial, Tomo I, Art. 138º crimes contra as pessoas, exposição ou abandono – Cunha, J. M. Damião da., Coimbra Editora, 1999, ISBN 972-32-0854-7.

 

Gonçalves, Manuel Lopes Maia – Código Penal Português – anotado e comentado – Legislação complementar, 14ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, Janeiro 2001.

 

 Artigo elaborado por :

 

Adélio Tinoco Mendes

 

Enfermeiro Especialista de Reabilitação

 

Aluno do 4.º Ano do Curso de Licenciatura em Direito da FDUC

 

Serviço de Ortopedia A-R/C dos Hospitais da Universidade de Coimbra