Erro notório na apreciação da prova. Impugnação da matéria de facto. Descaminho. Abuso de confiança fiscal. Crime continuado. Pedido cível

ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO. DESCAMINHO. ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL. CRIME CONTINUADO. PEDIDO CÍVEL
RECURSO CRIMINAL Nº
843/12.2TALRA.C1
Relator: JORGE DIAS
Data do Acordão: 09-03-2016
Tribunal: LEIRIA (INSTÂNCIA CENTRAL)
Legislação: ARTS. 410.º E 412.º DO CPP; ART. 233.º DO CPPT; ART. 105.º DO RGIT; ARTS. 30.º, 34.º E 36.º DO CP.
Sumário:

  1. O vício do erro notório na apreciação da prova só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respetiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida.
  2. Os nºs 3 e 4 do art. 412 do CPP, indicam os pressupostos específicos a observar no recurso, nomeadamente na motivação, quando se impugna a decisão sobre a matéria de facto.
  3. Constando do auto de penhora que o fiel depositário “não podia transmitir os referidos “bens” sem autorização do Chefe do Serviço de Finanças”, equivale a dizer que, com autorização, o fiel depositário podia transmitir.
  4. In casu, o inciso “ sem autorização do Chefe do Serviço de Finanças”, integra o tipo objetivo do crime, por isso, deveria a acusação descrever os factos consubstanciadores daquela expressão e deles fazer prova em julgamento.
  5. Não incumbe ao arguido o ónus da demonstração de que agiu com justa causa [com autorização], como única forma de evitar a condenação.
  6. Para que haja cometimento do crime de abuso de confiança fiscal é necessário provar a participação do(s) administrador(es) na tomada de decisões da sociedade, nomeadamente, que tenha participado na decisão de não entregar ao Estado o imposto em causa.
  7. As sucessivas retenções ou não entregas de imposto normalmente causadas pelas dificuldades financeiras, com a demora na atuação por parte da autoridade tributária e por vezes até em mais de uma empresa (como no caso) facilitam a ação, tornam cada vez menos exigível que o agente adote comportamento conforme ao direito e assim lhe diminuem a culpa na repetição.
  8. Para o efeito de existir situação exterior que diminua a culpa é completamente irrelevante que a retenção ou não entrega do imposto, simultânea ou sucessiva, se reporte a IRC, IRS ou IVA.
  9. Originando o crime a prestação tributária em falta, prestação comunicada (ou não) à administração tributária é ao montante desta prestação que se atende para efeitos criminais e consequências daí advenientes.
  10. O pagamento parcial da prestação tributária, mesmo que feito no prazo a que se reporta a al. a) do nº 4 do artigo 105 do RGIT, não tem a virtualidade de alterar o montante dessa prestação para efeitos de responsabilidade penal.
  11. Quanto ao destino dos montantes de IVA recebidos dos clientes (ou outros impostos de que a sociedade seja depositária) e não entregues ao fisco, é irrelevante para efeitos criminais o destino que lhes é dado.
  12. A sociedade é um devedor substituto com a posição jurídica de detenção e de domínio sobre a prestação – entrega jurídica – para que ela posteriormente a devolva ao fisco. E, para se consumar o crime, basta a não entrega da prestação, sem necessidade de apuramento do destino que lhe é dado.
  13. A generalidade da doutrina e da jurisprudência têm concluído de modo praticamente unânime pela improcedência das causas de exclusão de ilicitude do conflito de deveres ou de justificação da culpa do estado de necessidade desculpante, nas situações em que o gerente porque se debate com dificuldades económico-financeiras, e com vista a assegurar a manutenção da empresa, acaba por afetar o IVA liquidado e recebido ao pagamento de fornecedores em vez de proceder à sua entrega nos cofres do Estado.
  14. Entre a imposição legal de não se apropriar das quantias por si deduzidas e de as entregar ao Estado, traduzido num dever geral de omissão, e o dever de ação – pagamento de credores – sempre prevaleceria o primeiro.

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