Discurso do Presidente da Relação no Concerto no Colégio da Trindade

Senhor Director da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Professor Doutor Jónatas Eduardo Mendes Machado.

Senhor Professor Doutor José Manuel Aroso Linhares.

Senhora Directora da Orquestra Clássica do Centro, Sra. Dra. Emília Cabral Martins.

Senhores Professores.

Ilustres convidados.

Minhas senhoras e meus senhores.

Começo por saudar todos os organizadores, oradores, participantes, convidados e demais presentes neste evento.

Estendo as saudações, também, a todos os que nos acompanham à distância através da Justiça TV.

Confidencio-vos o imenso prazer e honra em estar convosco, como Presidente da Relação de Coimbra, neste Colégio da Trindade, pertencente à Faculdade de Direito da mesma cidade.

 

Senhor Director da Faculdade Direito!

Os destinos da Faculdade de Direito e da Relação de Coimbra cruzaram-se em 1918, por ocasião da fundação da Relação resultante de um trabalho persistente e preponderante do Professor Doutor José Alberto dos Reis; mais tarde por ocasião da instalação da Relação no Palácio da Justiça determinada pelo então Ministro da Justiça, Manuel Rodrigues Júnior, professor da Faculdade de Direito de Coimbra; e mais tarde ainda, em 1959, por ocasião da inauguração do salão nobre da Relação presidida por João de Matos Antunes Varela, também Ministro da Justiça e docente da mesma Faculdade.

Cruzam-se, de novo, neste ano de 2022.

Como se recordará, fomos condiscípulos durante todo o ensino secundário e, também, nesta Faculdade de Direito.

Somos, hoje, o Presidente e o Director da Relação e da Faculdade de Direito de Coimbra, respectivamente.

Quero muito que tal circunstância possa contribuir para um desejável reforço das relações entre as instituições que dirigimos.

Da minha parte e para esse efeito conte com o que de útil eu e a Relação de Coimbra pudermos revelar-nos.

 

Excelências!

Minhas senhoras e meus senhores!

Permitam-me que enalteça esta iniciativa conjunta da Faculdade de Direito de Coimbra, da Orquestra Clássica do Centro (OCC) e da Relação de Coimbra.

A mesma permite-nos fazer uma reflexão conjunta sobre diferentes aspectos da relação entre a música e o Direito enquanto realidades universais, por um lado, e desfrutar do desempenho musical com o elevado nível de proficiência a que nos habituaram as intervenções da OCC, por outro lado.

Na parte que me compete e no contexto internacional com que estamos confrontados, proponho-me fazer uma breve reflexão sobre a música e os direitos humanos fundamentais enquanto realidades dotadas da universalidade de que este encontro também trata.

 

Excelências!

Minhas senhoras e meus senhores!

Embora seja relativamente recente a convicção de que a humanidade das pessoas constitui, por si só, fonte de direitos inalienáveis, essa convicção encontra raízes em documentos bem antigos, como por exemplo os quatro Vedas hinduístas cuja parte mais antiga pode ter sido compilada aproximadamente em 2000 antes de Cristo, o Código Babilónico de Hammurabi que terá sido elaborado por volta de 1.700 antes de Cristo, a Bíblia, o Alcorão e as Antologias de Confúcio.

Essa temática dos direitos humanos individuais também encontra eco noutros documentos mais recentes como a Carta Magna de 1215, a Bill of Rights inglesa de 1689, a Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão francesa de 1789 e a Bill of Rights americana de 1791.

Entretanto, foi já em pleno século XX que ocorreu o Holocausto.

Importa notar, com relevo para o tema que aqui nos fez encontrar, que também a música não escapou aos horrores do Holocausto.

Com efeito, falar de música e Holocausto implica recordar que aquela também foi instrumento do regime nazi, que fez uso generalizado da música em comícios e outros eventos públicos, particularmente música de marcha e canções de propaganda empolgantes.

Além disso, a música teve um papel fundamental nos campos de concentração, incluindo nos de exterminação.

Por um lado, como instrumento de humilhação e disciplina dos prisioneiros que rotineiramente eram forçados a cantar enquanto marchavam ou se exercitavam ou durante acções de punição.

Nalgumas situações, com esse propósito de humilhação, alguns prisioneiros tinham que cantar canções de valor simbólico. Por exemplo, os comunistas e sociais-democratas foram obrigados a cantar canções do movimento trabalhista.

Noutro plano, a música foi pretexto para espancamentos de prisioneiros pelas SS, como disso nos deu conta Eberhard Schmidt ao revelar que “Aqueles que não conheciam a música foram espancados. Aqueles que cantavam baixinho eram espancados. Aqueles que cantavam muito alto eram espancados. Os homens da SS infligiram espancamentos selvagens.”.

Noutros casos, a música foi utilizada como instrumento de reeducação política, de tortura e de dissimulação: em Dachau fez-se um uso da música e da rádio para doutrinar e torturar explicitamente os prisioneiros, privando-os do sono e obrigando-os a escutar canções que menorizavam os valores políticos, religiosos e comunitários dos prisioneiros; em Buchenwald praticava-se o canto em massa forçado como forma de tortura musical; nesses e noutros campos, a música de marcha foi tocada para dissimular os sons das execuções.

Existiram orquestras oficiais em quase todos os principais campos de concentração, subcampos maiores e em alguns campos de extermínio.

Em Auschwitz existiram uma banda filarmónica composta por 120 músicos e uma orquestra sinfónica com 80 músicos, com repertórios diversificados onde se incluíam, por exemplo, marchas, música de salão, canções populares, trechos de ópera e música clássica, como a Quinta Sinfonia de Beethoven.

Esses conjuntos musicais realizavam concertos de domingo para oficiais da SS com mentalidade cultural, eram exibidos como demonstração do desempenho exemplar dos campos em que estavam integrados, tocavam música para acompanhar execuções encenadas diante de toda a população do campo ou, ocasionalmente, em conexão com o chamado processo de selecção, com a chegada de novos transportes ou com entradas na câmara de gás.

Fazer-se e tocar-se música também integrou uma estratégia de sobrevivência por parte dos que tinham essa faculdade, pois que a troco de assim procederem esses músicos tinham alguma protecção contra actos arbitrários, recebiam tarefas de trabalho menos desgastantes, roupas melhores ou mais e melhores alimentos.

A música serviu, ainda, como meio de sobrevivência cultural e de resistência psicológica, permitindo de algum modo aos prisioneiros músicos combater o medo e a solidão, assim como manterem a sua identidade e tradições.

Falar-vos de música durante o período do Holocausto implica recordar, outrossim, as canções do acampamento e os hinos do campo de concentração, entre as quais ganhou destaque a canção de acampamento de Borgermoor que na sua versão inglesa ficou conhecida como a Canção dos Soldados do Pântano de Turfa.

Assim como trazer-vos à memória Theresienstadt, um campo de concentração criado pela Alemanha Nazi, em 24 de Novembro de 1941, na cidade checa que hoje se denomina Terezín, por onde passaram mais de 140 mil pessoas, 90 mil das quais foram mortas nas câmaras de gás dos campos de extermínio.

Foi nesse campo que estiveram detidos muitos artistas e intelectuais judeus da Checoslováquia, Áustria e Alemanha, entre os quais músicos.

Entre eles contaram-se, por exemplo: o compositor Viktor Ullmann, que aí compôs cerca de 20 obras, incluindo a ópera O Imperador de Atlantis ou A Rejeição da Morte; o compositor Zikmund Schul, autor, entre outras, do Duo para Violino e Viola, da Cantata Judaica, das Danças Chassídicas; o compositor checo Pavel Haas, autor, entre outras, das obras Não Lamente e Quatro Canções sobre Poesia Chinesa; Hans Krása, autor, entre outras, da ópera Noivado em um Sonho e da cantata A Terra é do Senhor

Todos eles foram exterminados pelos nazis, assim como o foram mais de seis milhões de judeus, ciganos, homossexuais e deficientes, entre outros, por puro ódio, intolerância, xenofobia e preconceito rácico.

Terminada a II Guerra Mundial, surgiu a necessidade de se julgarem os responsáveis pelo Holocausto, para o efeito de que foi instituído o Tribunal Militar Internacional que levou a efeito o julgamento de Nuremberga.

Foram justamente o Holocausto e o julgamento de Nuremberga a que deu origem que trouxeram para a ribalta o tema dos direitos humanos fundamentais e a necessidade de serem instituídos mecanismos impeditivos das atrocidades cometidas durante a II Guerra Mundial e de prevenção de riscos futuros de discriminação, intolerância, incitamento ao ódio e à violência.

E foi nesse enquadramento que a 10 de Dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi adoptada pelos 56 membros das Nações Unidas, embora já na altura com a apodíctica abstenção da então União Soviética.

Consta do respectivo preâmbulo, de forma eloquente, que “O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.”.

Na sequência da DUDH foram aprovados dois instrumentos jurídicos vinculativos: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o seu Protocolo opcional, e o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC).

Depois deles, foram aprovados diversos documentos regionais para a protecção e promoção dos direitos humanos. Por exemplo: a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (a Carta de Banjul), a Declaração do Cairo Sobre Direitos Humanos no Islão.

Foram igualmente criadas e instaladas instituições regionais de tutela dos direitos humanos fundamentais, de que são exemplos o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos e o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.

Entre os direitos consagrados nesses diferentes instrumentos normativos e tutelados por essas instituições conta-se, com relevo para o tema aqui em reflexão, o da liberdade de expressão que tutela, designadamente, a liberdade de criação artística de que a música é um dos mais relevantes resultados.

Na sequência da proliferação de todos esses instrumentos normativos, da criação e instalação dessas instituições regionais de tutela, e tendo presente a convicção que julgo colectiva de que a dignidade da pessoa humana constitui a base de qualquer Estado decente e que se preze de Direito, achei eu em tempos, e estou certo que achámos todos os aqui presentes, que jamais se repetiriam no pós- guerra episódios que tivessem consequências sequer aproximadas às que caracterizaram o Holocausto.

Reconheço, profundamente consternado, o meu grande engano nessa matéria.

Com efeito, os momentos mais recentes que se viveram na Europa recordam-nos drasticamente que sob a liderança constante e imperialista de Vladimir Putin, a Rússia tem insistido em acções profundamente violadores das regras mais básicas do direito internacional, assim como dos mais elementares direitos humanos fundamentais.

Depois do seu envolvimento nos massacres de Grozny, na Tchetchénia, e de Alepo, na Síria, depois da Guerra na Geórgia, e ainda depois da anexação da Crimeia, entre outros episódios, já em 2022 a Rússia invadiu unilateralmente a Ucrânia, dando início a uma guerra entre esses dois Estados que nos conduziu a um quase neo-holocausto com que estamos confrontados.

De facto, apesar do mundo se ter praticamente unido na condenação da invasão russa da Ucrânia, em duas deliberações condenatórias que foram aprovadas maciçamente na Assembleia Geral das Nações Unidas, o certo é que desde o momento do início dessa invasão temos assistido impotentes à violência sobre crianças, mulheres e homens indefesos, às mortes de civis inocentes em consequência dos bombardeamentos que atingem populações indefesas, habitações, creches, escolas, unidades hospitalares civis, às deslocalizações em massa de pessoas em busca de refúgios que atingem já cerca de quatro milhões de pessoas e com tendência de crescimento, às separações drásticas das famílias, à perda de propriedade, à destruição de cidades inteiras, à demolição de monumentos que integram o património cultural da humanidade, tudo causado pelo exército russo, em violação flagrante e plural dos mais básicos direitos humanos fundamentais.

Importa notar, com relevo para o tema que aqui hoje nos trouxe, que também na guerra da Ucrânia, como noutras, a música tem desempenhado um papel importante e plural.

Ora como meio de protesto contra a invasão, de que é exemplo a interpretação feita pela banda punk ucraniana Beton, do tema Kiev Calling, um hino de protesto contra a invasão russa que resultou de uma adaptação de uma das mais aclamadas canções dos Clash – London Calling.

Ora como meio de apaziguamento do sofrimento suportado pelas populações atingidas. Por exemplo: a interpretação, num bunker em Kiev, pela menina Amelia Anisovych, da versão ucraniana da música “Let It Go”, do filme Frozen; as interpretações da violinista Vera Lytovchenko, em Kharkiv, na Ucrânia, no bunker onde a população se protegeu dos bombardeamentos.

Também como meio de fortalecimento de uma consciência colectiva de resistência ao invasor. Por exemplo: a actuação da Orquestra Sinfónica Clássica na Praça Maidan, em Kiev, assim com a actuação da banda militar numa praça de Odessa.

Finalmente como meio de angariação de fundos para apoio humanitário de refugiados ucranianos, como por exemplo o concerto no dia 15 de Março, na Super Bock Arena, no Porto, com a participação de vários músicos portugueses, e a música “If They’re Shooting at You” da banda escocesa Belle and Sebastian.

 

Excelências!

Minhas senhoras e meus senhores.

Estes e outros terríveis episódios da nossa história recente forçam-nos a estimular a nossa consciência colectiva no sentido de que é absolutamente essencial respeitarmos os direitos humanos fundamentais, sendo de enorme relevo todas as iniciativas que sejam empreendidas com esse propósito.

Por isso mesmo, em boa hora, o Governo de Portugal criou o Programa Nunca Esquecer, através da Resolução do Conselho de Ministros n.° 51/2020, com o propósito, também, de serem promovidas em Portugal acções que contribuam para nunca esquecer as atrocidades do passado, para prevenir e combater todas as formas de discriminação, racismo, xenofobia e o anti- semitismo, assim como para a construção de um mundo caracterizado pelo respeito universal dos direitos humanos de todos e cada um, assim como pela absoluta irradicação da indiferença e do desrespeito da dignidade humana.

Também em boa hora, a Relação de Coimbra constitui-se parceiro desse programa e participou ao longo do último ano e activamente na respectiva dinamização.

E não podia deixar de o ter feito, atendendo a que os tribunais globalmente considerados, incluindo a Relação de Coimbra, devem ser os principais guardiães dos direitos humanos fundamentais.

Importa notar que também no âmbito do programa Nunca Esquecer e dos respectivos eventos teve papel de destaque a música.

Recordamos aqui, apenas a título de exemplo, o Concerto Nunca Esquecer levado a efeito no âmbito da parceria entre a Orquestra Clássica do Centro e a Relação de Coimbra, ou a intervenção musical da mesma Orquestra no âmbito da Conferência em Memória do Holocausto e de Aristides de Sousa Mendes organizada pela Relação de Coimbra.

 

Excelências!

Minhas senhoras e meus senhores.

Reunimo-nos aqui para reflectir um pouco sobre a universalidade dos mundos musical e jurídico.

Falei-vos, entre o mais, de direitos fundamentais, de música, de guerra e da Ucrânia.

Permitam-me, por isso e para terminar em registo musical, que vos leia alguns dos trechos da letra de uma música – Ucrânia Livre, dos UHF – que também nos fala um pouco desses temas.

Reza assim:

Diz-me que este Inverno é mentira

A velha ordem quer regressar

A loucura na ponta das miras

O invasor não pode passar

A fogueira do velho continente

Os canhões e os soldados voltaram

Assaltando um país independente

De sangue a terra mancharam

O mundo livre acordou

No pesadelo da guerra

A miséria voltou

Do Norte veio a fera

Esse homem de gelo no olhar

Violou a vida de um povo

O mundo livre não pode deixar

Que a cobiça e o ódio sirvam o louco

Ucrânia livre

(Que a guerra devora)

De pé resiste na velha Europa

(Ucrânia livre)

(Ucrânia livre)

Vencerá”.

Muito obrigado pela vossa presença e atenção.

Jorge Manuel da Silva Loureiro