Vício da contradição da matéria de facto. Crime de homicídio qualificado na forma tentada com dolo eventual. Tentativa. Motivo fútil. Dolo eventual. Crime de resistência e coacção sobre funcionário. Comportamentos violentos

VÍCIO DA CONTRADIÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO. CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO NA FORMA TENTADA COM DOLO EVENTUAL. TENTATIVA. MOTIVO FÚTIL. DOLO EVENTUAL. CRIME DE RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO. COMPORTAMENTOS VIOLENTOS

RECURSO CRIMINAL Nº 127/24.3GAOHP.C1
Relator: PAULO REGISTO
Data do Acórdão: 08-10-2025
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 3
Legislação: ARTIGOS 14.º, N.º 3, 22.º, N.º 1, 132.º, N.º 2, ALÍNEA E), E 347.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL; ARTIGO 410.º, N.º 2, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

 Sumário:

I – Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, devem resultar do próprio “texto da decisão recorrida”, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, independentemente da apreciação que foi realizada pelo tribunal a quo da prova produzida em audiência de julgamento.
II – Tratam-se de vícios da própria decisão, em si mesmo considerada, que se diferenciam de erros de julgamento, que servem de fundamento à apresentação de recurso da matéria de facto, com base em errada apreciação da prova produzida em audiência, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
III – O vício previsto pela al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, tanto pode resultar dos factos provados serem inconciliáveis entre si, como existir incompatibilidade entre factos provados e/ou factos não provados, como no caso da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto se mostrar contraditória com os factos provados e/ou os factos não provados, como quando a fundamentação de facto se mostrar inconciliável com a fundamentação de direito ou ainda no caso em que a fundamentação for incompatível com a própria decisão proferida.
IV – Não padece do vício da al. b) deste preceito, por contradição da matéria de facto, o acórdão que julgou provado que o agente admitiu a possibilidade de retirar a vida ao ofendido, conformando-se com esse resultado, por lhe ter desferido um golpe com uma navalha na zona do abdómen, após lhe ter dito “mato-te já”, mesmo que permaneçam por esclarecer os motivos que o levaram a não empreender outros comportamentos agressivos.
V – O conceito indeterminado de “motivo fútil” da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP encontra-se consolidado na jurisprudência e na doutrina nacionais, enquanto motivo insignificante, sem importância ou sem sentido perante o senso comum, que quase chega a não ser motivo, em que o comportamento do agente surge notoriamente desproporcional perante a actuação da vítima.
VI – Para efeitos do disposto na al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP, constitui “motivo fútil”, revelador de especial censurabilidade da conduta, se o agente defere um golpe com uma navalha na zona abdominal na vítima, após afirmar “anda cá seu filho da puta, que eu mato-te já”, por esta o ter repreendido, na sequência do agente, momentos antes, ter cuspido na direcção das suas pernas.
VII – O conceito de tentativa plasmado no n.º 1 do art. 22.º do CP não exclui que os actos de execução do tipo possam ser imputados ao agente a título de dolo eventual (art. 14.º, n.º 3, do CP), por também, nestes casos, o julgador se deparar com um crime que o agente “decidiu cometer”.
VIII – O art. 22.º, n.º 1, do CP, ao estabelecer que “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer”, admite que o agente tenha actuado com dolo eventual, na medida em que, em qualquer uma das modalidades de dolo, o agente quis empreender os actos de execução e aceita ou conforma-se com o resultado criminoso.
IX – Deste modo, não há qualquer obstáculo para que o agente venha a sancionado pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, mesmo quando se encontre provado que actuou com dolo eventual.
X – Integra a prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário do art. 347.º, n.º 1, do CP, a conduta do agente que, ao esbracejar e ao espernear, deitou ao chão um dos militares da GNR, o que fez com que este batesse com a cabeça num pilar e sofresse cinco dias de doença com incapacidade para o trabalho, para que, de seguida, lhes dirigir, entre outras, as seguintes palavras, “vocês vão pagá-las”, “os vossos carros, as vossas vidas, nunca mais vão ter paz” e “vocês não imaginam o que vos vai acontecer”, por forma a eximir-se à sua detenção.
XI – A violência exercida, que implicou o emprego de força física e a prolacção de diversas palavras de intimidação, afectou a liberdade de actuação dos militares desta força de segurança e mostrou-se adequada a dificultar o exercício das suas funções.
XII – Não se exige que os comportamentos violentos sejam irresistíveis, intransponíveis ou insuperáveis, de modo a que quem exerce autoridade pública fique impossibilitado de praticar os actos relativos ao exercício das suas funções ou que fique compelido a praticá-los contra os deveres a que se encontra subordinado.
(Sumário elaborado pelo Relator)

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