Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Crime de receptação. Recebimento de quantias monetárias por transferência bancária. Dolo. Contrato de depósito bancário pecuniário. Depósito irregular. Titular da conta. Conta colectiva. Presunção judicial. Utilização por terceiros de conta bancária. Princípio in dubio pro reo

INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA. CRIME DE RECEPTAÇÃO. RECEBIMENTO DE QUANTIAS MONETÁRIAS POR TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA. DOLO. CONTRATO DE DEPÓSITO BANCÁRIO PECUNIÁRIO. DEPÓSITO IRREGULAR. TITULAR DA CONTA. CONTA COLECTIVA. PRESUNÇÃO JUDICIAL. UTILIZAÇÃO POR TERCEIROS DE CONTA BANCÁRIA. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
RECURSO CRIMINAL Nº 856/21.3JAPDL.C1
Relator: ANA PAULA GRANDVAUX
Data do Acórdão: 08-10-2025
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 2
Legislação: ARTIGO 231.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 1205.º, 1206.º E 1142.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário:
I – A alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. estabelece uma conexão entre a matéria de facto provada e a decisão jurídica que nela assenta, pelo que não tem sentido invocar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada sem apontar em concreto a omissão da matéria de facto que ocorre.
II – O conteúdo do crime de receptação consiste na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica, aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior, facto referencial, ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação dela com a coisa.
III – A acção típica do crime de receptação traduz-se na dissimulação, recebimento em penhor, aquisição por qualquer título, detenção, conservação, transmissão ou contribuição para a sua transmissão, de coisa obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património.
IV – Quanto ao tipo subjectivo é necessário que, por um lado, o agente saiba efectivamente que a coisa provém de um crime contra o património e que, por outro, tenha a intenção de obter, para si ou para outrem, uma vantagem patrimonial.
V – Pratica o crime de receptação o arguido que recebe, por transferência bancária, quantias monetárias que se encontravam na posse de terceiro não identificado, o qual acedeu às mesmas contra a vontade da legítima titular, com vista à sua transferência para contas bancárias de outros sujeitos, nomeadamente do arguido, que se disponibilizaram para a utilização da sua conta.
VI – O dolo consiste no conhecimento de que a sua conta estava a ser usada como veículo de dissimulação de dinheiro pertencente a outrem por indivíduo que se estava a apropriar do mesmo ilegitimamente, por se tratar de dinheiro de proveniência criminosa.
VII – Não obsta à verificação do crime não ter ficado provado que a cedência da utilização da conta bancária por terceiro foi feita a troco do recebimento de alguma vantagem económica, conferida pelo agente que procedeu à transferência, porque o recebimento, pelo receptador, de uma recompensa monetária ou outra, conferida pelo agente do crime contra o património, não é elemento do tipo.
VIII – O depósito bancário pecuniário, contrato pelo qual uma ou mais pessoas entregam a uma instituição bancária uma determinada quantia em dinheiro, ficando este obrigado a devolver ao depositante, nas condições acordadas, a mesma importância, normalmente acrescida de juros, constituí um contrato de depósito que o Código Civil classifica como depósito irregular.
IX – São elementos essenciais do depósito irregular a entrega material ou electrónica, pelos depositantes, de uma quantia em dinheiro ao banco depositário e a restituição de quantia de igual montante, normalmente acrescida de juros.
X – Este contrato é, em parte, um negócio jurídico real «quoad constitutionem», pois exige, além do acordo das partes, um acto material de entrega dos fundos monetários, e «quoad effectum», porque implica a transferência da propriedade dos fundos para a instituição bancária, ficando o depositante (anterior proprietário dos fundos) na titularidade (por conversão do seu direito real) de um direito de crédito à devolução das importâncias depositadas, a qual tem como reverso a obrigação de restituição por equivalente.
XI – Tal significa que, com a celebração do depósito bancário, o banco passa a ser o titular do direito de propriedade sobre os valores depositados pelo cliente, ao passo que este fica seu credor na mesma medida, com direito à restituição daqueles valores.
XII – O titular de uma conta é a pessoa a quem pertencem os fundos depositados e é o responsável pela sua movimentação.
XIII – A conta colectiva é aquela que tem mais do que um titular e pode ser conta conjunta, quando a movimentação só pode ser válida e eficazmente efectuada através da intervenção simultânea de todos os titulares e em que só a restituição efectuada a todos os titulares tem carácter liberatório, ou conta solidária, quando qualquer um dos seus titulares a pode movimentar isoladamente, tanto a débito como a crédito.
XIV – A experiência comum, os usos sociais e as regras da lógica e de mínimos básicos de prudência ensinam à generalidade dos cidadãos quais são os perigos associados à utilização por terceiros, conhecidos ou desconhecidos, de contas bancárias de que são os legítimos titulares, ademais com a informação precisa sobre o NIB ou o IBAN.
XV – Faz parte do senso comum que uma conta bancária não é algo que se empreste para ser usado por outrem, mesmo por mera cortesia, sem qualquer tipo de restrição, como se fosse essa pessoa a titular da conta e perdendo esta o controle sobre as entradas e saídas de dinheiro, os montantes depositados, transferidos, ou aplicados noutros produtos financeiros, a partir dessa conta ou para essa conta bancária.
XVI – As presunções judiciais e o princípio in dubio pro reo são mecanismos de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime.
