Impugnação da matéria de facto. Valoração da prova. In dubio pro reo. Violência doméstica. Tipicidade da conduta

IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO. VALORAÇÃO DA PROVA. IN DUBIO PRO REO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. TIPICIDADE DA CONDUTA
RECURSO CRIMINAL Nº
403/16.9GASEI.C1
Relator: VASQUES OSÓRIO
Data do Acordão: 25-10-2017
Tribunal: GUARDA (J C GENÉRICA DE SEIA – J1)
Legislação: ARTS. 127.º, 412.º, 417.º E 430.º, DO CPP; ART. 152.º DO CP
Sumário:

  1. O recurso da matéria de facto ou, preferindo-se, a impugnação ampla da matéria de facto foi concebido como um remédio para sanar o que a lei tem por excepcional no julgamento feito pela 1.ª instância, o erro na definição do facto.
  2. É precisamente por isso que a lei impõe ao recorrente, e apenas ao recorrente, a identificação precisa do erro [ou erros] que pretende corrigir pela via do recurso e a sua demonstração.
  3. Não basta, porém, para a procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal.
  4. Não tendo o arguido, na argumentação deduzida, feito a relação entre o conteúdo de cada meio de prova que especificou com cada facto que considera incorrectamente julgado, por forma a permitir ao tribunal de recurso aferir da bondade da pretensão, face ao sentido e alcance de cada meio de prova, impossibilitou o efectivo conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto que deduziu.
  5. A valoração da prova não é mero arbítrio, ela exige do juiz uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, e na percepção [no que respeita à prova por declarações] da personalidade dos declarantes e depoentes, tendo sempre como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo.
  6. Se produzida a prova, subsiste na mente do julgador um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se-lhe proferir uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
  7. Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da sentença, devendo, por isso, resultar dos termos desta, de forma clara e inequívoca, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.
  8. A dúvida relevante para este efeito não é, no entanto, a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, em conformidade com a apreciação que dela, por si [recorrente], foi feita, mas antes, a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.
  9. O crime de violência doméstica tem como elementos constitutivos do respectivo tipo, na parte em que agora interessa: [Tipo objectivo] – A inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge; [Tipo subjectivo] – O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência de que o mesmo é censurável.
  10. Não definindo a lei o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, esclarecendo apenas que nele se integram castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, incluem-se neste conceito todas as condutas agressivas que visam atingir directamente o corpo do ofendido.
  11. A qualificação de uma determinada acção como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um outro tipo de ilícito. Por outro lado, a aptidão de uma determinada acção para preencher o conceito de mau trato não significa, sem mais, a verificação do «crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 Especial, Setembro/Dezembro, 2010, pág. 19).
  12. Embora seja média e baixa a intensidade da violência empregue em cada concreta conduta, quando consideradas em conjunto, o padrão de comportamento, a imagem global do facto – que é a que verdadeiramente importa na violência doméstica – que delas resulta caracteriza a relação de domínio do agente sobre a vítima, e tem aptidão para afectar, relevantemente, a dignidade da assistente enquanto ser humano, por via da afectação da sua saúde física, psíquica e moral.

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