Decisão da matéria de facto. Princípio da livre apreciação da prova. Convicção do tribunal. Princípio in dubio pro reo. Crime de lenocínio agravado. Ameaça grave. Especial vulnerabilidade da vítima

DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO. PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA. CONVICÇÃO DO TRIBUNAL. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. CRIME DE LENOCÍNIO AGRAVADO. AMEAÇA GRAVE. ESPECIAL VULNERABILIDADE DA VÍTIMA

RECURSO CRIMINAL Nº 246/15.7JACBR.C1
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Data do Acórdão: 08-10-2025
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 3
Legislação: ARTIGOS 30.º, N.º 3, E 169.º, NºS 1 E 2, ALÍNEAS A) E D), DO CÓDIGO PENAL; ARTIGO 127.º E 410.º, N.º 2, ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

 Sumário:

I – Sob pena de inversão da posição das personagens do processo, a crítica à convicção do tribunal assente na imediação e oralidade e sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção sobre a prova produzida.
II – Não tem de haver inteira coincidência entre as declarações e depoimentos prestados em audiência que suportam a convicção do tribunal, para que o julgador firme a certeza prática sobre a verificação dos factos provados.
III – Sobretudo quando a prova seja, essencialmente, pessoal, ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
IV – Na ausência de impugnação ampla da decisão da matéria de facto, a violação do princípio in dubio pro reo deve ser tratada em termos análogos ao erro notório na apreciação da prova, mas a sua existência só pode ser afirmada quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se concluir que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
V – Ao nível da conduta típica do crime de lenocínio, os n.ºs 1 e 2 do artigo 169.º do Código Penal têm os mesmos componentes, que são a facilitação, o fomento ou favorecimento da prática da prostituição de terceiros, de modo profissional ou com intenção lucrativa, acrescentando o n.º 2 as circunstâncias modificativas que agravam aquela conduta.
VI – O bem jurídico tutelado pela incriminação do n.º 2 é a liberdade de autodeterminação sexual da pessoa constrangida por qualquer um dos meios elencados.
VII – Ameaçar é anunciar um mal futuro que aparece ao ameaçado como dependente da vontade do agente, aferindo-se a gravidade da ameaça pela sua medida ou intensidade.
VIII – Integra o conceito de ameaça grave, da alínea a) do n.º 2 do artigo 169.º do Código Penal, o arguido dizer às ofendidas, com frequência em tom sério, que se não pagassem as quantias provenientes da prostituição e se não atendessem clientes as venderia em Espanha, causando-lhes fundado receio de que tal viesse a acontecer, tanto mais que elas sabiam que o arguido fora condenado por crimes de tráfico de pessoas, sequestro e lenocínio por ter enganado, sequestrado, explorado e transportado várias mulheres portuguesas para Espanha.
IX – O conceito de «situação de especial vulnerabilidade» deve ser interpretado «no sentido em que a vítima não tem “outra alternativa possível” … senão submeter-se ao exercício da prostituição».
A falta de alternativa possível pode reportar-se, não apenas ao momento inicial da prostituição, como à manutenção de tal actividade, a qual, por sua vez, pode aprofundar a exclusão e o desamparo social, verificando-se a qualificativa quando, em qualquer destas fases (inicial ou de manutenção) o agente se aproveita da «especial vulnerabilidade da vítima».
X – Integram o conceito de especial vulnerabilidade da vítima situações de desamparo social, como são os casos em que a pessoa, por exemplo em situação de pobreza extrema e sem possibilidade de prover ao seu sustento e da sua família que dela depende, consente dedicar-se à prostituição.
XI – Atenta a natureza pessoalíssima do bem jurídico tutelado, ocorrem tantos crimes de lenocínio quantas as pessoas vitimizadas.

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