Falta de fundamentação. Omissão de pronúncia. Crime de tráfico de estupefacientes. Crime de tráfico de menor gravidade. Instrumentos, produtos e vantagens do crime. Perda alargada. Instrumento do crime no regime especial do crime de tráfico de estupefacientes. Perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime no regime geral. Perda de objectos, coisas ou direitos relacionados com a infracção no regime especial do crime de tráfico de estupefacientes. Lucros e outros benefícios obtidos com os bens provenientes do crime de tráfico de estupefacientes. Determinação do valor concreto da vantagem a ser confiscada. Despesas, custos, gastos ou encargos na prossecução da actividade económica do tráfico de estupefacientes. Princípio da proporcionalidade na determinação das vantagens a declarar perdidas

FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. OMISSÃO DE PRONÚNCIA. CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES. CRIME DE TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE. INSTRUMENTOS, PRODUTOS E VANTAGENS DO CRIME. PERDA ALARGADA. INSTRUMENTO DO CRIME NO REGIME ESPECIAL DO CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES. PERDA DE INSTRUMENTOS, PRODUTOS E VANTAGENS DO CRIME NO REGIME GERAL. PERDA DE OBJECTOS, COISAS OU DIREITOS RELACIONADOS COM A INFRACÇÃO NO REGIME ESPECIAL DO CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES. LUCROS E OUTROS BENEFÍCIOS OBTIDOS COM OS BENS PROVENIENTES DO CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES. DETERMINAÇÃO DO VALOR CONCRETO DA VANTAGEM A SER CONFISCADA. DESPESAS, CUSTOS, GASTOS OU ENCARGOS NA PROSSECUÇÃO DA ACTIVIDADE ECONÓMICA DO TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NA DETERMINAÇÃO DAS VANTAGENS A DECLARAR PERDIDAS

RECURSO CRIMINAL Nº 27/22.1GCMGL.C1
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Data do Acórdão: 10-09-2025
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – JUIZ 2
Legislação: ARTIGO 18.º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; ARTIGOS 109.º A 112.º-A DO CÓDIGO PENAL; ARTIGO 178.º A 186.º, 191.º A 194.º, 227.º E 228.º, 374.º, N.º 2, 379º, N.º 1, DO CÓDIGO PROCESSO PENAL; ARTIGOS 21.º, 25.º E 35.º A 39.º DO D.L. Nº 15/93, DE 22 DE JANEIRO; ARTIGO 1.º, ALÍNEA A), DA LEI 5/2002, DE 11 DE JANEIRO.

 Sumário:

I – Ainda que se esteja perante um modus operandi simples, com recurso a meios sem sofisticação, com encontros previamente combinados para a entrega do estupefaciente, via telemóvel ou Messenger, considerando que a actividade se desenrolou durante cerca de dois anos, o número de pessoas identificadas a quem o arguido vendia e a frequência com que o fazia, os locais de venda estrategicamente escolhidos, o modo como procurava os consumidores, a troca frequente de números de números de telemóvel, o volume de vendas concretizadas e as condições que decorriam, resulta não estarmos perante um crime de tráfico de menor gravidade, por tais circunstâncias agravarem a ilicitude da conduta.
II – O regime actual de perda de bens, decorrente da clássica e tradicional distinção entre a «perda dos instrumentos ou produtos» do crime e a «perda de vantagens» deste resultantes, assenta essencialmente em dois modelos: a perda dos instrumentos, produtos ou vantagens do crime e a perda alargada, cada deles com pressupostos de campos de aplicação distintos.
III – A perda de instrumentos, produtos e vantagens pressupõe a demonstração de que as mesmas foram obtidas, directa ou indirectamente, da prática de um facto ilícito típico, exigindo-se a prova, no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido.
IV – Na perda alargada o regime probatório é menos exigente e baseia-se na diferença entre o património do arguido com base na presunção da ilicitude desconforme, estando aqui em causa não apenas as vantagens directamente resultantes da prática do crime, mas a existência de um património incongruente com os rendimentos lícitos, abrangendo a perda tudo aquilo que não é congruente com os rendimentos lícitos e que, por isso, se presume constituir vantagem de actividade criminosa.
V – O regime da perda de instrumentos, produtos e vantagens que exige uma relação causal entre o facto típico ilícito e o bem concreto suscpetível de ser confiscado é regulado, no plano geral, pelos artigos 109.º a 112.º – A do Código Penal e 178.º a 186.º, 191.º a 194.º e 227.º e 228.º, do C.P.P., e no plano especial do crime de tráfico de estupefacientes pelos artigos 35.º a 39.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro e 1.º, alínea a), da Lei 50/2002, de 11 de Janeiro.
VI – No regime geral os instrumentos do crime são todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos e produtos do crime são todos os objectos produzidos pela prática do crime, isto é, apenas e só aquilo que, inexistindo previamente, é “produzido” pela sua prática (artigo 109.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, do Código Penal).
VII – Aqui a perda dos instrumentos do facto ilícito justifica-se em razão das finalidades de prevenção da utilização dos mesmos na actividade criminosa.
VIII – Se tais instrumentos não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva.
IX – Os produtos do crime são todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática, isto é, apenas e só aquilo que, inexistindo previamente, é “produzido” pela prática do crime.
X – Já as vantagens do facto ilícito abrangem todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem (artigo 110.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal).
XI – Também aqui, o regime geral determina que se os produtos e as vantagens não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
XII – No regime especial do crime de tráfico de estupefacientes, instrumentos do crime são todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática do crime ou que por este tiverem sido produzidos (artigo 35.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro).
XIII – Neste regime especial o perdimento de bens tem matrizes especificas e próprias, muito menos exigente nos seus pressupostos do que o previsto no Código Penal, de modo a combater qualquer rentabilidade da actividade de tráfico.
XIV – Aqui vantagens do crime são todas as coisas ou direitos relacionados com o facto típico e ilícito, se as recompensas, objectos, direitos ou vantagens tiverem sido transformados ou convertidos em outros bens, são estes perdidos a favor do Estado em substituição daqueles e se tiverem sido misturados com bens licitamente adquiridos, são estes perdidos a favor do Estado até ao valor estimado daqueles que foram misturados.
XV – No regime especial do crime de tráfico de estupefacientes as regras do perdimento de bens reguladas nos artigos 35.º a 37.º do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro, são aplicáveis a todos os lucros e outros benefícios obtidos com aqueles bens.
XVI – As vantagens podem reportar-se a objectos corpóreos ou incorpóreos, podem traduzir-se num aumento do activo, na diminuição do passivo, na evitação de prejuízos ou nas poupanças de gastos, isto é, tudo aquilo que permita um enriquecimento patrimonial do agente.
XVII – Podem, ainda ser directas, se respeitarem às próprias coisas que o agente do crime imediatamente obtém, como, por exemplo, as quantias ou outros bens recebidos pelo agente em contrapartida da venda de estupefacientes, podem ser indirectas, as denominadas vantagens em cadeia do crime, que decorrem do investimento das vantagens directas, e podem ser sucedâneas das vantagens directas, se conseguidas através da troca ou transacção das vantagens directas, por exemplo, um automóvel comprado com o dinheiro do tráfico.
XVIII – Além disso, podem ser instantâneas, se ocorrerem no momento da prática do facto, continuadas, se aumentarem com o decorrer do tempo, ou diferidas para um evento posterior e podem repercutir-se, quer na esfera patrimonial do agente, quer na de um terceiro.
XIX – O confisco não se restringe apenas aos activos resultantes directa ou indirectamente da prática do crime ou ao sucedâneo, podendo, também, incidir sobre todo o património lícito do arguido, nomeadamente se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens relacionadas com o crime não puderem ser apropriados em espécie, caso em que a perda ou o confisco é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, em conformidade com os artigos 109.º, n.º 3 do Código Penal e 36.º, n.º 4, do D.L. nº n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
XX – Na esteira do defendido na doutrina e na jurisprudência, tem-se vindo a entender que o cálculo do «respectivo valor» se deve reportar à data da aquisição, de acordo com uma perspectiva objetivo-individual (através da utilização de critérios objetivos, de natureza económica, face à realidade económica do agente) e que deve obedecer aos principio do “ganho líquido” (devendo deduzir-se às vantagens alcançadas os montantes despendidos para a sua obtenção), sob pena de o valor bruto implicar uma ficção de enriquecimento.
XXI – Nas situações em que a actividade subjacente à prática do crime é, intrinsecamente, ilícita, como é o caso do crime de tráfico de estupefacientes, não há qualquer tutela jurídica para as despesas, custos ou encargos ou benefícios tidos com a actividade, pois a ilicitude de qualquer uma das modalidades da acção objectiva típica e ilícita elencadas no artigo 21.º contamina os gastos com aquisição, transporte e logística que lhe são inerentes, ainda que provenientes do património licito do agente.
XXII – Se a perda do valor dos instrumentos do crime é admissível para os crimes em geral, também o deve ser para o regime especial do tráfico de estupefacientes, quer porque gizado em pressupostos de menor exigência do que o Código Penal, porque não contraria as regras estabelecidas nos artigos 35.º a 39.º do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro, porque a razão de um regime especial é impedir qualquer ganho com a actividade de tráfico e porque assim o exigem os princípios orientadores que enformam este regime de perda de bens.
XXIII – As despesas, custos, gastos ou encargos na prossecução da actividade económica do tráfico de estupefacientes não integram a categoria de direitos ou interesses legalmente protegidos, garantidos e salvaguardados no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

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