Helena Susano Assessora Jurídica da Magistratura Judicial do TRC
Apropósito dos contratos de arrendamento de espaços para parqueamento de viaturas, celebrados antes da entrada em vigor do R.A.U., diferentes têm sido as posições defendidas pela doutrina e jurisprudência: por um lado, entende-se que se regem pelo disposto no artº 5º, nº 2, al. e) deste diploma legal e, por outro, defende-se também que se submetem à disciplina dos artº 1083º e 1095º do C.C.(1)
Quid juris?
O contrato de arrendamento de espaços não destinados a habitação, comércio, indústria ou exercício de profissão liberal é regulado, presentemente, pelos artº 5º, nº 2, al. e) e artº 6º do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo artº 1º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15/X., podendo o senhorio denunciar livremente o contrato, uma vez observados os procedimentos legalmente impostos. Porém, no caso de o contrato ter sido outorgado em plena vigência do regime jurídico instituído pelo Código Civil de 1966, (anterior à entrada em vigor do R.A.U., ocorrida a 15 de Novembro de 1990), que vedava ao senhorio essa possibilidade, e uma vez que os diplomas contêm, em relação a esta matéria, regulamentações diferentes, põe-se um problema de aplicação da lei no tempo.
Esta questão remete-nos para a análise da norma constante do artº 5º, nº 2, do R.A.U., a fim de avaliar se tem natureza interpretativa e, consequentemente, conduz à aplicação do artº 13º do C.C. A este respeito, a doutrina divide-se. Por uma banda, Menezes Cordeiro e Castro Fraga, in Novo Regime do Arrendamento Urbano, Anotado, 1990, entendem que as alíneas b) e e) do referido artº 5º vieram esclarecer dúvidas sobre a aplicação da legislação anterior, pelo que têm natureza interpretativa e, em conformidade, aplicação retroactiva, por força do disposto no artº 13º do C.C.. Alguma jurisprudência, ainda que de forma claramente minoritária, tem seguido esta posição, designadamente o Ac. da RL de 24/1/95 (in Base de Dados Jurídico Documentais, do Ministério da Justiça – DGSI) “O disposto no artigo nº 2, al. e) do R.A.U. tem eficácia retroactiva, nos termos do artº 13º, nº1 do Código Civil” e o Ac. do mesmo Tribunal de 7/12/1994 “O artº 5º do R.A.U. tem natureza interpretativa”, in C.J., XIX, 5, p.124.
Contra este entendimento, o Prof. Pereira Coelho, num artigo intitulado “Breves notas ao regime do Arrendamento Urbano”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 125, nº 3822, refere que se a natureza interpretativa é sustentável no que diz respeito aos arrendamentos de paredes ou telhados para painéis publicitários, tendo já sido, quanto a esses arrendamentos, suscitada a inaplicabilidade do artº 1095º do C.C. pelo Prof. Antunes Varela, já o não é quanto à alínea e), sendo pacífico que, no regime jurídico anterior ao da entrada em vigor do R.A.U., era aplicável, aos arrendamentos para garagens, o princípio da renovação automática. Daí que a nova norma não comporte uma natureza interpretativa, mas inovadora. Perfilhamos esta última posição e ilustramo-la com o Ac. do STJ de 12/02/97 (in Base de Dados Jurídico Documentais, do Ministério da Justiça – DGSI) que passamos a transcrever. “Para se qualificar uma norma como interpretativa é imperioso que esta característica seja segura, que seja evidente e claro o propósito e a vontade do legislador em regular e atingir mesmo os casos passados“. E ainda o Ac. de 7/4/88 do mesmo Tribunal, recolhido na mesma fonte, onde se justifica a natureza interpretativa de uma norma com o facto de não ter tido a intenção de inovar.
Considera Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, p. 131, que esta questão é meramente especulativa uma vez que, quer se considerando a natureza interpretativa, quer por aplicação do disposto no artº 12º, nº 2, 2ª parte do C.C. (posição sustentada pelo Prof. Pereira Coelho), sempre será aplicável o disposto no nº 2 do artº 5º aos contratos anteriores a 15 de Novembro de 1990.
Com efeito, o Prof. Pereira Coelho, no artigo supra citado, p. 264, assenta a sua posição nas seguintes considerações: trata-se de uma inovação, o direito de denúncia por parte do senhorio, dispondo a nova lei sobre o conteúdo da relação locativa independentemente do contrato de arrendamento em que a mesma relação se originou. Assim, não se trata de um efeito do contrato, de um efeito das declarações de vontade das partes ou do silêncio delas a tal propósito, mas de uma alteração do estatuto de senhorio nestes arrendamentos, cabendo na previsão do disposto no nº 2, 2ª parte do artº 12º do C.C: “A alínea e) do nº 2 do artº 5º do R.A.U. não tem carácter interpretativo, mas fundamentalmente inovador, pelo que o artº 13º do C.C. não tem aplicação ao caso. Isto não obsta a que os arrendamentos a que se refere aquela alínea possam ser livremente denunciados pelo senhorio, nos termos gerais do artº 1055º do C.C., mesmo que anteriores a 15 de Novembro de 1990, pois a nova lei dispõe directamente sobre o conteúdo da relação locativa independentemente do contrato que lhe deu origem (C.C., artº 12º nº 2, 2ª parte).
Vem a propósito, para explicitar o conteúdo da argumentação transcrita, recorrer às palavras do Prof. Baptista Machado, in Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil,1968. Aí se pode ler que há duas categorias de normas: as que regulam factos e as que regulam direitos. As primeiras são fixadas por leis que simplesmente determinam os efeitos, isto é, as consequências jurídicas, incluindo o efeito constitutivo de um facto, normas estas que, em caso de dúvida, só valem para o futuro (1ª parte do nº 2 do artº 12º do C.C.). As segundas, são estabelecidas por leis que regulam direitos, independentemente dos respectivos factos constitutivos e, no que a estas diz respeito, deve presumir-se que abrangem as próprias situações já existentes, podendo modificar-lhes o conteúdo ou até suprimi-lo (2ª parte do nº 2 do artº 12º do C.C.). A al. e) do nº 2 do artº 5º do R.A.U. pertence a esta última categoria de normas. Portanto, ao analisar a norma contida na alínea e) do nº 2 do artº 5º do R.A.U., conclui-se que se está perante uma norma que veio alterar o conteúdo da relação locatícia, referente a espaços urbanos não habitacionais, independentemente dos concretos contratos que lhe deram origem. E, em consequência, de acordo com o disposto na segunda parte do nº 2 do artº 12º do C.C., é aplicável aos contratos “que subsistam à data da sua entrada em vigor“, ou seja, aos contrato de arrendamento outorgados antes da entrada em vigor do RAU.
Ainda sobre a temática da aplicação das leis no tempo escreve V. Gama Lobo Xavier in Revista de Direitos e de Estudos Sociais, ano XIV, um artigo intitulado “Sobre a aplicação do artº 830º, 1º, do novo Código Civil aos contratos-promessa celebrados anteriormente à sua vigência”, que nos parece esclarecedor para sustentarmos a nossa posição. Aí se pode ler “Como é sabido, dois interesses conflituantes há fundamentalmente a ter em conta em qualquer problema de aplicação das leis no tempo. Por uma lado, o interesse público inerente à regulamentação introduzida pela lei nova, que se presume ser a melhor, interesse que reclama a aplicação imediata da nova lei ao maior número possível de situações. Por outro, o interesse da certeza jurídica, do respeito das justas expectativas dos particulares criadas à sombra de determinada lei – interesse, este último, que justifica restrições mais ou menos latas à aplicação imediata e condicionada da nova regulamentação. Conforme, em dada espécie, uma justa ponderação atribua mais ou menos peso a um ou outro destes interesses, assim o problema é de resolver pela aplicação ao caso da lei nova ou pela sua sujeição à disciplina jurídica anterior”.
Nesta linha de raciocínio importa considerar a ratio legis do carácter vinculístico dos contratos de arrendamento para habitação e comércio e que constitui uma séria limitação ao princípio da liberdade contratual. Com efeito, tal carácter prende-se com a estabilidade habitacional, valor este constitucionalmente consagrado, que não encontra sentido na locação de espaços para parqueamento de viaturas, política proteccionista esta há muito seguida em vários países e institucionalizada definitivamente no nosso Código Civil, numa primeira fase, e posteriormente no R.A.U.. O interesse do arrendatário na estabilidade da locação não se justifica relativamente aos espaços ditos não habitáveis, em que os prejuízos de uma denúncia do contrato pelo senhorio são substancialmente inferiores. Menezes Cordeiro num artigo intitulado “Contrato de arrendamento; Denúncia; Âmbito de regime vinculístico” in Revista da Ordem dos Advogados, ano 54, p. 843 a 849, recorre ao argumento de que o regime vinculístico não se justifica perante todas as locações de imóveis, havendo que manter o primado do elemento teleológico da interpretação, sendo que apenas os arrendamentos habitacionais ou comerciais o justificariam, à luz das valorações feitas pelo legislador. Neste sentido o Ac. da RL de 16/3/96, in Base de Dados Jurídico Documentais, do Ministério da Justiça – DGSI: “Já no domínio da lei velha se acentuava o entendimento que inexistia qualquer razão de interesse público justificativa da aplicação, aos supracitados casos (arrendamentos de garagens)da disciplina proteccionista vigente para os arrendamentos designados por vinculísticos“.
Deste jaez, e porque se nos afigura que a alínea e) do nº 2 do artº 5º do R.A.U. é aplicável aos contratos de arrendamento iniciados antes da entrada em vigor do RAU, ex vi o disposto no nº 1 do artº 6º do mesmo diploma, há que os sumeter ao regime estatuído pelo artº 1055º do C.C., que permite a denúncia do contrato pelo senhorio, uma vez observada a formalidade nele prescrita.
A jurisprudência tem, de forma largamente maioritária, considerado que, mesmo aos contratos de arrendamento de garagens celebrados antes da entrada em vigor do R.A.U., é de aplicar o regime geral da relação locatícia, podendo o senhorio denunciar o contrato nos termos do artº 1055º do C.C (2).
Notas (1) Esta questão foi suscitada no recurso de apelação nº 2298, que esteve na génese deste estudo, e que consta do Ac da RC de 12/12/2000 (2)Cfr. Ac. da RL de 5/06/96, 4/06/96, 13/10/94, 28/5/98 e da RP de 16/12/99, 4/5/99, 1/7/97, 5/11/96, 14/3/96 e 26/2/96, todos da Base de Dados Jurídico Documentais, do Ministério da Justiça – DGSI.
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