Propriedade horizontal. Título constitutivo. Interpretação. Destino da fração. Uso diverso. Abuso de direito. Prestação de facto infungível. Recurso. Conclusões. Nulidade da sentença. Factos complementares. Prova pericial

PROPRIEDADE HORIZONTAL. TÍTULO CONSTITUTIVO. INTERPRETAÇÃO. DESTINO DA FRACÇÃO. USO DIVERSO. ABUSO DE DIREITO. PRESTAÇÃO DE FACTO INFUNGIVEL. RECURSO. CONCLUSÕES. NULIDADE DA SENTENÇA. FACTOS COMPLEMENTARES. PROVA PERICIAL
APELAÇÃO Nº
22/17.2T8CLB.C1
Relator: MOREIRA DO CARMO
Data do Acordão: 31-03-2020
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – C.BEIRA – JUÍZO C. GENÉRICA
Legislação: ARTS. 236, 238, 334, 829-A, 1418, 1421, 1422 CC, 5, 615, 662 CPC
Sumário:

  1. Quando as conclusões contenham um fundamento ou razão que não tenha sido exposta/desenvolvida nas alegações/contra-alegações deve considerar-se não formulada tal questão, com a consequente impossibilidade de conhecimento, nesse segmento, da pretensão apresentada, designadamente uma litigância de má fé do apelante ao interpor o seu recurso.
  2. Uma coisa é uma nulidade da sentença, por eventual não especificação dos fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão (art. 615º, nº 1, b), do NCPC), outra é um eventual vício da decisão da matéria de facto, por indevida fundamentação de factos essenciais (art. 662º, nº 2, d), de tal código), realidades diferentes, contudo;
  3. Se os factos que se pretendem sejam dados por provados tiverem, a natureza de principais essenciais e não foram alegados pela parte respectiva não podem ser considerados em impugnação da decisão da matéria de facto, sob pena de violação do disposto no art. 5º, nº 1, do NCPC; se tiverem a natureza de factos principais concretizadores ou complementares e resultarem da instrução da causa e que as partes conheceram, só podem ser considerados, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do NCPC, se o julgador avisar as partes que está disponível para os considerar factualmente ou as partes requereram que tal aconteça e assim possa haver lugar ao exercício do respectivo contraditório.
  4. O julgador só se pode afastar e postergar os factos relatados pelos peritos e as suas conclusões, tecnicamente fundamentadas, oriundas da valoração dos mesmos, se outra prova, de carácter probatório elevado e fidedigno, inequivocamente apontar em sentido diverso.
  5. A modalidade do “tu quoque”, da figura do abuso de direito, nas três situações elencadas na decisão recorrida: o agente violador de uma norma jurídica não pode prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente; ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio; ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada; tem a ver com a primazia da materialidade subjacente, e, portanto, com a situação jurídica em concreto e específica que se quer fazer impor;
  6. Se a A. demanda os RR, por violação por parte destes do fim a que destinam a sua fracção, constituída em propriedade horizontal, restauração em vez de comércio, não é por ela ter usado a sua fracção de garagem a uso diferente, a actividade de vidente, e ter feito obras na mesma de ligação às partes comuns do prédio, que ao demandar judicialmente aqueles RR para pôr fim a tal uso está a actuar com abuso de direito na modalidade de “tu quoque” (nem os RR ao demandarem reconvencionalmente a A., por tal actuação ilícita da mesma).
  7. Inexistindo “factum proprium” da A., que incutisse confiança nos RR, e por isso não se verificando qualquer conduta contraditória por parte daquela, não se verifica qualquer abuso de direito da sua parte, na modalidade de “venire”.
  8. O título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado à luz das regras constantes dos arts. 236º a 238º do CC.
  9. O sentido corrente e normal que se tem em vista quando se menciona que se destina a comércio um determinado espaço, é o sentido de nesse local se instalar um estabelecimento comercial, para mediação e troca de bens e serviços, e não um estabelecimento em que se exerça actividade industrial como é o caso da restauração.
  10. Não resultando do título quaisquer outras indicações quanto à finalidade a prosseguir nesse espaço, mas dele resultando que a maioria das fracções se destina a habitação, o declaratário normal, exigente e sagaz, sabe que o licenciamento administrativo do estabelecimento, e respectivos critérios e condicionante, não releva no sentido de permitir que, à luz das finalidades que constam do título constitutivo, seja admissível, no imóvel, um restaurante.
  11. O declaratário normal e diligente sabe que as actividades industriais, incluindo a restauração, são susceptíveis de facilmente pôr em causa em causa a tranquilidade e o sossego dos moradores e a própria qualidade ambiental do imóvel; é, pois, levado a considerar que, quando se referencia no título constitutivo determinada fracção para comércio, a loja a instalar é para estabelecimento comercial cuja actividade, em regra, implica afluência limitada de pessoas, um horário de funcionamento diurno e a ausência de cheiros, odores e ruídos próprios do exercício de outras actividades, designadamente as de natureza industrial.
  12. A obrigação a que os RR vão ser condenados, definida no ponto 6. que antecede, é uma prestação de facto e infungível, pois só eles a podem cumprir. 

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