Princípio da presunção de inocência. Direito ao silêncio do arguido. Princípio nemo tenetur se ipsum accusare. Crime de abuso de confiança. Apropriação ilegítima

PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. DIREITO AO SILÊNCIO DO ARGUIDO. PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE. CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA. APROPRIAÇÃO ILEGÍTIMA

RECURSO CRIMINAL Nº 221/18.0GAMIR.C1
Relator: HELENA BOLIEIRO
Data do Acórdão: 24-05-2023
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CASTRO DAIRE
Legislação: ARTIGO 32.º, N.º 1 E 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; ARTIGO 205.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL

Sumário:

I – O direito do arguido à não auto-incriminação, entendido como o direito de não contribuir para a sua própria incriminação, conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se ipsum accusare, está intimamente ligado ao direito ao silêncio, na medida em que, não sendo reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação.
II – Segundo o princípio nemo tenetur se ipsum accusare ninguém é obrigado a auto incriminar-se ou a contribuir para a sua própria condenação, o que, no essencial, corresponde ao direito de não testemunhar contra si próprio, de não produzir prova contra si mesmo ou de fornecer coactivamente qualquer tipo de declaração ou informação que o possa incriminar, apresentando elementos que provem a sua culpabilidade.
III – Viola o princípio nemo tenetur se ipsum accusare notificar o arguido para devolver as peças que ainda tivesse na sua posse e/ou esclarecer o que tivesse por conveniente sob pena de, nada entregando e/ou dizendo, se considerar que se tinha apropriado das mesmas.
IV – No crime de abuso de confiança o elemento relativo à “coisa entregue por título não translativo da propriedade” significa que, ao contrário do que sucede no furto, o agente recebe a coisa de forma voluntária, por um qualquer acto que não lhe confere a qualidade de proprietário, mas a de mero detentor em nome alheio.

V – A lei ao referir-se ao elemento da entrega supõe uma entrega que é acompanhada do correspectivo recebimento da coisa por parte do agente, pelo que o que verdadeiramente caracteriza a entrega, bem como o recebimento da coisa, é a existência de uma “relação fáctica de domínio sobre ela”.
VI – Em relação à “apropriação ilegítima” a ilicitude da conduta reside no facto de, a partir de determinado momento, não obstante o agente deter a coisa de forma válida, ele passar a conformar-se e a agir como se fosse seu proprietário, fazendo-o de forma ilegítima, no sentido de não consentida ou permitida pela ordem jurídica vista na sua globalidade, sendo neste contexto convocáveis os vários institutos jurídicos civilísticos que dizem respeito ao direito de propriedade e, em particular, às formas de aquisição deste direito real.
VII – A nova atitude psíquica do agente relativa à “apropriação” deverá revelar-se não por meros estados de alma, mas por meio de circunstâncias objectivas exteriorizadas das quais seja legítimo concluir que aquele passou a dispor da coisa como própria, invertendo o título de posse ou detenção, exigindo-se a exteriorização, no plano físico, do animus de dono da coisa.
VIII – Diferentemente do que sucede com o furto, em que a apropriação intervém como elemento do tipo subjectivo de ilícito (como “intenção de apropriação”), no abuso de confiança este elemento faz parte da sua estrutura de apropriação qua tale, isto é, assume a veste objectiva de elemento do tipo objectivo de ilícito.
IX – A apropriação supõe, pois, a inversão do título da posse ou detenção através da prática de um ou mais actos concludentes do agente de onde resulta de forma inequívoca que aquele deliberada e intencionalmente fez sua a coisa alheia.
X – Não constitui apropriação a mera não devolução, pelo agente, de coisa que recebeu por título não translativo da propriedade sem que a vontade de apropriação se tenha revelado numa conduta externa incompatível com a vontade de a restituir ao proprietário, pois para que a negativa de restituição consubstancie apropriação ela deverá ser precedida ou acompanhada de actos que revelem o referido animus de o agente fazer sua a coisa alheia, como, nomeadamente, a venda, doação, consumo, dissipação, penhor ou ocultação, ou então que não exista causa legítima para a retenção, nem fundamento legal ou motivo razoável para a recusa de restituição.

Consultar texto integral