Caso julgado. Crime continuado. Abuso de confiança fiscal

PRINCIPIO NE BIS IN IDEM;CASO JULGADO; ÂMBITO DO CASO JULGADO;CRIME CONTINUADO; ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL;ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL;BENS JURÍDICOS PROTEGIDOS;PENA SUSPENSA;CONDIÇÕES DE SUSPENSÃO;PEDIDO CÍVEL;EXECUÇÃO FISCAL;LITISPENDÊNCIA
RECURSO PENAL N.º 14/03.9IDAVR.C1
Relator: DR. ALBERTO MIRA
Data do Acordão: 28-05-2008
Tribunal Recurso: CIRCULO JUDICIAL DE ANADIA
Legislação Nacional: ARTIGOS 29.º, N.º 5 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; ARTIGOS 30.º E 50.º E 129.º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 105.º E 107.º DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS; E ARTIGOS 71.º E 77.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário:

  1.   Contrariamente ao que sucedia no Código de Processo Penal de 1929, a lei adjectiva hoje vigente não regulamenta sistemática e especificamente o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicata, só existindo referência ao referido instituto nos artigos 84.º e 467.º, nos concretos domínios que as referidas normas especificam.
  2.  Ainda assim o ordenamento jurídico-penal não prescinde do instituto que confere e assegura a defesa do arguido e a consagra, em termos sistema social e dos fins da justiça, a segurança e a certeza do Direito.
  3.  Por isso é que o artigo no n.º 5 do artigo 29.º da CRP, dando dignidade constitucional ao clássico princípio ne bis in idem, se consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime»;
  4.  A expressão “mesmo crime” não deve ser interpretado, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o n.º 5 do art. 29.º da C.R.P. proíbe, é no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal».
  5.  A delimitação do conceito de “identidade do facto” ou seja a determinação do sentido e o alcance do objecto do processo penal, na lição de Frederico Isasca, «só pode ser (…) o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível, pelo que o “[…] o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados».
  6. «O objecto relativamente ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há-de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consuntiva de uma sentença relativamente a futuras acusações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos a julgamento».
  7.  Assim para aquilatação de ocorrência de caso julgado numa situação de continuação criminosa: «se algumas actividades fazem parte de uma continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz, (…), podendo-se opor sempre ao exercício da respectiva acção penal a excepção ne bis in idem».
  8. O crime de abuso de confiança fiscal, independentemente da precisa configuração do bem jurídico protegido, pretende proteger o erário público e o interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias, tendo em vista a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
  9.  No crime de abuso de confiança em relação à segurança social o bem jurídico tutelado é o erário de que é titular a segurança social [formado a partir das receitas contributivas do sistema definidas segundo critérios materiais e afectas aos fins específicos de solidariedade], que é ofendido pela não satisfação de um direito de crédito.
  10. A lei anterior – artigo 50.º, n.º 4 do Código Penal – permitia, em conformidade com o n.º do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que o tribunal suspendesse a pena ao arguido com a condição de no prazo fixado na sentença pagar as quantias em que houvesse sido condenado;
  11.  A 15ª alteração do Código de Processo Penal operou uma modificação no regime da suspensão da pena passando a fazer equivaler o período da suspensão á pena de prisão aplicada, mas nunca inferior a um ano – n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal.
  12.  Na opção pelo regime mais favorável – artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal – dever-se-á optar pela solução de impor ao condenado o regime actual dado que quanto mais curto for o período de suspensão mais depressa o agente fica a coberto das consequências negativas que a revogação da suspensão envolve sendo ainda de ponderar que só o incumprimento culposo (grosseiro e repetido) da obrigação determina a revogação da suspensão da execução da pena (arts. 55.º e 56.º do CP).
  13. Enquanto no processo executivo o pedido emerge do não pagamento pontual de obrigações fiscais, o fundamento que suporta o pedido de indemnização formulado nos presentes autos é a prática de um crime de abuso de confiança fiscal pelo que não possa ocorrer litispendência entre o processo de execução fiscal e o pedido de indemnização civil enxertado no processo penal.