Matéria de facto. Sua impugnação. Ónus do impugnante. Objeto negocial. Ordem pública
MATÉRIA DE FACTO. SUA IMPUGNAÇÃO. ÓNUS DO IMPUGNANTE. OBJETO NEGOCIAL. ORDEM PÚBLICA
APELAÇÃO Nº 184/20.1T8GRD.C1
Relator: VÍTOR AMARAL
Data do Acórdão: 11-05-2020
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – J.C. CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 2
Legislação: ARTº 640º NCPC; ARTº 280º, Nº 2 C. CIVIL.
Sumário:
- Ao impugnar a decisão relativa à matéria de facto cabe ao recorrente, em sede conclusiva, expressar o sentido da decisão a dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica, de que não poderá demitir-se, dos meios de prova produzidos/invocados – exigência de reforço do ónus de alegação e conclusão, por forma a evitar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente –, sob pena de rejeição da impugnação, por insuficiência ou obscuridade, na parte não fundamentada em exame crítico das provas.
- Tais exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, em decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão de facto se transforme em manifestação de inconsequente inconformismo.
- A “ordem pública” com que tem de conformar-se o objeto negocial, sob pena de nulidade (art.º 280.º, n.º 2, do CCiv.), reporta-se ao conjunto dos princípios jurídicos fundamentais em que se ancora o sistema jurídico, com acolhimento indiscutível na sociedade e que o Estado está substancialmente interessado em que prevaleçam sobre as convenções privadas.
- Já o “negócio ofensivo dos bons costumes” é aquele tem por objeto atos imorais, podendo estes ser imorais em si mesmos ou pelo seu nexo com a prestação da contraparte, estando em ponderação o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, corretas e leais – de boa-fé –, num determinado ambiente espácio-temporal (as regras morais aceites pela consciência social).
- Apurado que no ano de 2007, aquando da constituição de uma exploração agropecuária, o autor, o réu, um seu outro irmão e os seus pais acordaram, reciproca e livremente, como comparticipantes, que os títulos de aquisição dos imóveis, dos móveis, do gado, bem como os contratos de arrendamento de outros prédios rústicos afetos à exploração, e ainda os subsídios inerentes a tal atividade, fossem titulados apenas pelo réu, uma vez que este, pela sua idade e qualificação profissional, reunia condições para obtenção de subsídios e subvenções, designadamente do Estado, para a exploração, não é de concluir, por falta de base fáctica, que tal réu (a quem cabia o ónus probatório nesta parte) ficou instrumentalizado na condição de mero/exclusivo “testa de ferro” do autor, seu irmão.
- Sendo o réu quem dispunha de formação na área da agropecuária, com qualificação como jovem agricultor, podendo aceder aos ditos subsídios, que lhe eram concedidos e que deviam ser aplicados na exploração, era da sua indeclinável responsabilidade o destino que lhes viesse a caber, mormente em caso de resultar desvirtuado o escopo que presidira à respetiva atribuição.
- Se tal réu, durante anos, pediu e recebeu subsídios estatais para a sua atividade declarada, dando-lhes o destino que entendeu, mesmo que também em benefício de terceiros, bem conhecendo os deveres a que estava obrigado enquanto beneficiário, não é aceitável que só agora, instalado o litígio, venha, a final e contraditoriamente, invocar que não passou de um instrumento nas mãos do autor, seu irmão (sem menção aos seus pais e ao outro irmão).
- Sabido que o programa estabelecido entre os sujeitos da relação, de base negocial, ultrapassa largamente a problemática dos ditos subsídios, seria desproporcional – para além do comportamento contraditório do réu (provado ainda que este reconheceu, desde 2007, durante dez anos, que a exploração agropecuária, compreendendo imóveis, móveis, veículos, animais, alfaias, dinheiros e subsídios à exploração, era propriedade de autor e réu e em igual proporção, tendo o ponto de viragem, em termos de mudança de perspetiva/vontade, ocorrido já no ano de 2017, tal deixa evidenciado o designado venire contra factum proprium, modalidade do abuso do direito a que alude o art.º 334.º do CCiv., por manifesto excesso perante os limites impostos pela boa-fé, em termos de conduta coerente, honesta, correta e leal) – inutilizar totalmente o acordado, por via da nulidade prevista no art.º 280.º, n.º 2, do CCiv., com a consequência de o réu fazer sua, na totalidade, aquela exploração, apesar de comprovado que o autor é seu compossuidor, com ele tendo pago o preço de imóveis, animais e equipamentos, suportando ambos, na proporção de metade, os custos da exploração, para também repartirem entre si, na mesma proporção, os respetivos proventos.