Intervenção do Presidente do TRC de abertura no Colóquio «Justiça, Vontade, Estado e Território: o Infante D. Pedro e a sua Obra»

 

 

 

Intervenção de abertura

no Colóquio «Justiça, Vontade, Estado e Território: o Infante D. Pedro e a sua Obra» 

organizado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, pela Brigint (Exército Português), pela Câmara Municipal da Figueira da Foz e pelo CEMAR, no Salão Nobre da Relação de Coimbra, em 20 de Janeiro de 2019

Luís Azevedo Mendes

Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra

 

 

– Senhor Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz, Dr. João Ataíde

– Senhor Brigadeiro-General Matos Alves, comandante da Brigada de Intervenção

– Senhor Professor Alfredo Pinheiro Marques, alma do CEMAR, deste Colóquio e da exposição que hoje se inaugura

– Senhores Professores José Adelino Maltês e António Andrade Moniz, também nossos conferencista de hoje

– Senhor Presidente Emérito do Supremo Tribunal de Justiça, Conselheiro Noronha de Nascimento

– Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça presentes

– Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto

– Senhora Procuradora Distrital de Coimbra

– Senhor Secretário Geral do Ministério da Justiça, Dr. Carlos de Sousa Mendes

– Senhor vogal do Conselho Superior da Magistratura Dr. Armando Cordeiro

– Eméritos Presidentes desta Relação e eméritos Procuradores Distritais de Coimbra presentes

– Senhores Desembargadores

– Senhores Procuradores Gerais Adjuntos

– Senhores Presidentes dos Tribunais de Comarca Castelo Branco, de Coimbra e de Viseu

– Senhor Procurador Coordenador da Comarca de Coimbra

– Senhor Comandante da GNR, Coronel Ruivo Tomás

– Ilustres e Distintos Convidados

– Minhas Senhoras e meus Senhores

 

Muito me sensibiliza a presença de todos, que muito agradeço.

O presente Colóquio dedicado à figura do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra e Regente do Reino entre 1439 e 1448, é uma sessão que a Relação de Coimbra mais tarde ou mais cedo tinha de promover, mas dificilmente podia antecipar todo o envolvimento e toda a importância a que estamos hoje a assistir, com a qualidade do painel de palestrantes no Colóquio e com a grandiosidade e riqueza da exposição alusiva que aqui abre as suas portas.

O Tribunal da Relação de Coimbra que comemora este ano o seu centenário tem nesta sessão e na exposição um dos mais marcantes eventos que patrocina e é com muito orgulho que o afirmo. Marcante até na comunicação, porque é o primeiro evento televisionado com emissão em directo no site oficial da Relação.

Na preparação das celebrações do centenário assinalámos logo no início o interesse pela realização de eventos que produzissem reflexão e divulgação sobre a história das instituições do judiciário, do direito e da região que o tribunal serve. Uma das inspirações, devo dizê-lo, foi este Palácio da Justiça e todo o seu projecto decorativo.

Este Palácio foi o primeiro a ser edificado num vasto programa de qualificação dos espaços da justiça que veio a ter lugar a partir do primeiro quartel do Século XX no nosso país. Como muitos outros, celebra nos seus elementos iconográficos a história de Portugal, nuns casos aquela que se liga à Justiça, noutros a que se liga às regiões a que os edifícios pertencem, com inserção no movimento revivalista que deslizou do século XIX e da reacção ao ultimato britânico.

Essa história é no nosso Palácio representada em grande intensidade, sobretudo nos painéis de azulejos figurativos da autoria do pintor e ceramista Jorge Colaço. Inspirados neles, na nossa Relação, vamos nos próximos tempos em colóquios como este estudar a história evocada em cada um deles.

 Contudo, a primeira das figuras evocadas tinha de ser a do Infante D. Pedro. O painel que o representa, para além de ser o mais divulgado, é também o mais singular. É o único que representa uma figura única, numa postura solitária, de recato, pensamento, determinação e adivinhar trágico.

Jorge Colaço quis representá-lo, sem dúvida, na solidão em que se transformou a sua memória depois da tragédia de Alfarrobeira. E essa dimensão é uma das causas que aqui torna tão misteriosamente interessante a figura de D. Pedro.

Para além da primeira dinastia, só a dinastia de Avis é representada nos painéis e apenas em dois deles. O primeiro destes representa as Cortes de Coimbra de 1385 que confirmaram D. João I como rei. O segundo é o que representa o Infante D. Pedro, seu filho. Neste acabam as figuras históricas evocadas por Jorge Colaço, como se a história, num lamento, nada mais merecesse registar.

Só que a história, como hoje a conhecemos, tem depois dele muito mais a registar justamente por causa da acção de D. Pedro. É essa acção e as suas consequências que hoje aqui vamos recordar.

Meus senhores e minhas senhoras

Cumprimento, reconhecido, todos os qualificados e bem conhecidos palestrantes que hoje nos honram com a sua palavra sobre o Infante D. Pedro. O professor Doutor José Adelino Maltês, o professor Doutor António Andrade Moniz, o professor Alfredo Pinheiro Marques e o senhor Almirante Doutor António Silva Ribeiro, Chefe do Estado Maior General da Forças Armadas. É grande privilégio as suas participações.

Em particular, quero manifestar ao professor Alfredo Pinheiro Marques e ao Centro de Estudos do Mar e das Navegações Luís de Albuquerque – CEMAR, que ele anima, o meu subido agradecimento por todo o trabalho que teve na concepção e realização deste evento. Sem ele não teria acontecido. Os seus profundos conhecimentos científicos na história são para mim uma preciosa evidência, mas a sua capacidade de trabalho como organizador e, também, divulgador de história é insuperável como bem o demonstrou. Muito, muito obrigado.

Agradeço também à Brigada de Intervenção do Exército Português na pessoa do Senhor Brigadeiro-General Matos Alves a parceria há muito combinada para este Colóquio e toda a colaboração prestada na organização. O Infante D. Pedro é o patrono da Brigada e, tendo esta a sua sede em Coimbra, essa parceria foi o cumprimento de uma obrigação natural.

Finalmente, quero agradecer muito à Câmara Municipal da Figueira da Foz e ao seu presidente Dr. João Ataíde por todo o apoio prestado na organização da exposição que hoje vamos inaugurar. Foram os serviços culturais da Câmara, uma sua diligente equipa, que garantiu a montagem da exposição nas melhores condições, durante mais de uma semana. Foram ainda esses serviços que contribuíram activamente com a produção dos materiais de suporte à exposição. A exposição terá a sua continuidade na Figueira depois da sua vida em Coimbra, neste claustro superior da Relação. As duas cidades do antigo território do Ducado de Coimbra ficam assim ligadas pela representação cultural da vida e obra do Duque.

Mas também quero significar ao Dr. João Ataíde a minha alegria pela sua contribuição para este evento, uma vez que para além de presidente da Câmara da Figueira da Foz é também presidente da Comissão Intermunicipal da Região de Coimbra. Os dezanove municípios da Região, da Figueira à Lousã, formam o núcleo duro do território que foi o do Ducado de Coimbra e é também um importante núcleo do território da Relação de Coimbra. Por isso, a sua colaboração e o seu apoio têm um especial significado. Desse núcleo coeso, nas gentes, nas actividades, na cultura e na economia, só falta Aveiro e a sua região do Baixo Vouga que também integrava o Ducado, mas que desde 2013 por menor lucidez legislativa deixou a área desta Relação e passou para a do Porto, sem vantagem e sem vontade. Talvez a história e a memória de um largo território com afinidades ajudem a perceber o erro. Essa é sempre a minha esperança neste assunto.

Senhoras e senhores

O Infante D. Pedro de Coimbra foi um líder de viragem, decisivo na história de Portugal, da sociedade e do direito português, na história local e regional do grande território natural que é hoje a Beira Litoral, o então território do Ducado de Coimbra, primeiramente outorgado por D. João I ao Infante em 1415 e que viria a perder-se em 1550 com a morte de D. João de Lencastre, filho de D. João II e o 2º Duque de Coimbra.

Seguramente, nesta sessão serão ditas palavras mais certeiras sobre a obra do Infante.

Permitam-me, contudo, porque estamos numa casa de juízes e na ausência inesperada, embora mais que justificada, do Professor Rui de Figueiredo Marcos que nos falaria – de acordo com o programa – da importância do Infante na história do direito português, que a essa importância me refira, em particular à sua acção para a promulgação das Ordenações Afonsinas.

Atrás de mim, à vossa frente, neste Salão Nobre da Relação, temos uma magnífica tapeçaria sob desenho do pintor Guilherme Camarinha que representa as primeiras Cortes reunidas em Portugal de que há notícia e que se realizaram em 1211 nesta cidade de Coimbra, na altura a capital do Reino, juntando o rei D. Afonso II com representantes do clero e da nobreza. Estas Cortes estão relacionadas com a publicação do primeiro conjunto de leis escritas, a primeira legislação portuguesa. Nelas o rei obtinha a demarcação em relação às classes privilegiadas, protegia a Coroa e os seus bens, proibia abusos de funcionários régios e garantia liberdades individuais mais elementares, como as da permissão de que cada um vivesse com quem lhe aprouvesse e a proibição dos poderosos adquirirem bens por valor inferior ao real ou de tomarem os bens dos de classe mais baixa.

Começava a sentir-se na organização do reino e do Estado a necessidade de regras escritas, superiormente legitimadas por um sistema de poder que as fizesse firmes e respeitadas. Tal obrigava à sua formulação, à sua decisão com o mais amplo consenso ou à sua aceitação e suficiente divulgação para que todos as conhecessem, a começar pelos agentes da administração régia e da justiça.

Poucos anos mais tarde (o reinado de D. Afonso II foi muito curto e o mesmo sucederia com o de D. Sancho II), D. Afonso III convocou nova reunião das Cortes, em 1254 e em Leiria, com representantes de todos as classes, agora também da burguesia rural e urbana, sector que o tinha apoiado contra o irmão Sancho II. Mas paradoxalmente é no seu reinado que o quadro das fontes de direito afirma a supremacia de leis gerais cada vez mais sem necessidade de suporte político da Cortes, num movimento de reforço contínuo da autoridade régia, de centralização política e de unificação do sistema jurídico, com um corpo judiciário de aplicação cada vez mais consolidado. A lei passa a ser o modo corrente de produção do direito, com cada vez maior recurso ao apoio técnico de juristas com conhecimentos especializados, então de formação romanística e canonística. Só do tempo de Afonso III são conhecidas mais de duzentas leis, com destaque para as de processo, o que evidencia a consolidação do universo dos tribunais.

Nesse apontado movimento, não é difícil imaginar as quantidades de decretos e resoluções que foram promulgadas nos reinados seguintes. O que conduziu a um potencial caos no seu conhecimento pelas gentes e pelos tribunais, como bem compreenderemos se tivermos presente que a imprensa ainda não existia e que a reprodução dos diplomas só podia ser feita por via manuscrita, quantas vezes com risco de grosseiras infidelidades em relação ao original. Para organizar esse caos potencial, até aos princípios do Século XV são conhecidas algumas tentativas de elaboração de colectâneas de legislação avulsa, de origem privada, muitas vezes a partir das chancelarias ou dos tribunais.

E é neste ponto que chegamos à chamada época das Ordenações e às primeiras Ordenações, as Ordenações Afonsinas. No Livro I destas são explicadas as suas origens com os pedidos insistentes das Cortes para a organização de uma colectânea do direito vigente que evitasse as incertezas resultantes da dispersão e facilitasse a administração na justiça.

O trabalho começou com D. João I, sendo a compilação particularmente defendida por João das Regras, seu braço direito e bem representado no painel de azulejos que se situa à esquerda da saída deste Salão Nobre. Não teve conclusão porém, dada a morte do rei, ocorrida entretanto em 1404. 

Depois dele, D. Duarte designou o Doutor Rui Fernandes para a continuação dos trabalhos preparatórios. Mas à data da morte de D. Duarte, em 1438, nada estava concluído.

E é aqui que o Infante D. Pedro, agora regente do reino na menoridade de Afonso V surge com um papel de impulso determinante. Já na célebre “Carta de Bruges” que dirigiu ao seu irmão Duarte, em 1426 e antes dele subir ao trono, tinha sublinhado a urgência da compilação das leis do reino.

D. Pedro incentiva determinantemente Rui Fernandes para terminar o projecto das Ordenações, o que este viria a fazer em 1446. O projecto foi submetido a uma comissão e revisto por ordem do Infante, que lhe introduziu algumas alterações. Foram promulgadas em 1447, ainda no tempo da regência de D. Pedro, como o nome de Ordenações Afonsinas, por ser rei Afonso V, ainda que menor e com regente.

Qual é a importância destas Ordenações, as primeiras do reino?

De forma mais rápida e simples, podemos responder à pergunta dizendo que elas ocupam um lugar destacado na história do direito português porque foram a base de toda a legislação geral do reino até meados do século XIX, fazendo até a viragem do antigo regime e indo para além dele em muitos pontos da área de influência portuguesa, nomeadamente no Brasil pós-independência. Circunstância que se deve ao facto de as Ordenações seguintes, as Manuelinas e as Filipinas, terem mudado pouco a estrutura conseguida por D. Pedro, acrescentando-lhe apenas alterações de ocasião. Ou seja, pouco mais fizeram do que, em momentos seguintes, actualizarem a compilação de D. Pedro.

O segredo desta sobrevigência, relaciona-se com a técnica amigável a quem a tinha de usar e já conhecia o que antes existia. Os compiladores aproveitaram, sobretudo, leis existentes e muito foi extraído dos direitos romano e canónico e das obras de comentadores, o que facilitou a sua divulgação, compreensão e durabilidade.

As Ordenações Afonsinas não chegaram a ser impressas durante o curto período em que vigoraram, uma vez que a técnica da imprensa ainda não era de uso corrente. Esse facto dificultou a sua difusão, dificuldade a que se associou a circunstância de, após Alfarrobeira, nada ligado a D. Pedro ser bem visto. Daí que as Ordenações Manuelinas que as substituíram sejam vistas como tradução da vontade do rei D. Manuel I eliminar um rasto para ele incómodo, ao mesmo tempo que deixava o seu nome ligado a um importante instrumento de administração, aproveitando agora as possibilidades da imprensa já em uso acentuado, evitando a antes demorada produção de cópias manuscritas, um dos problemas para a aplicação da lei no reino.

As Ordenações Afonsinas estão divididas em cinco livros, tal como as que se lhe sucederam. O livro I trata dos cargos da administração e da justiça. O livro II ocupa-se essencialmente da relação entre Estado e Igreja, dos bens e privilégios da Igreja, dos direitos régios, da jurisdição dos donatários, das prerrogativas da nobreza. O livro III trata do processo civil. O livro IV, do direito civil, contratos, testamentos, tutelas, formas de distribuição e aforamento de terras, etc. O último dos livros trata do direito penal, dos crimes e das penas.

Ou seja, na mesma compilação temos uma Constituição, um código administrativo e de organização judiciária, um código de processo, um código civil e um código penal.

Na superação da idade média, num movimento iluminado, pela vontade iluminada e culta do regente D. Pedro, temos a dádiva da organização do direito, da justiça e do Estado, interdependentes que são, para a organização estratégica do povo de um território que tinha latente a vontade da sua expansão, tal como veio a suceder na epopeia portuguesa que a seguir se assistiu.

É esta uma das traduções do lema deste Colóquio, chamado “Justiça, Estado, Vontade e Território”, que aqui início nesta abertura.

Muito obrigado a todos.

 

(Luís Azevedo Mendes)

Coimbra, 20 de Fevereiro de 2019