Intervenção de abertura na Conferência “Em Memória do Holocausto – os 75 anos dos Julgamentos de Nuremberga e Aristides Sousa Mendes” –  Luís Azevedo Mendes   

Intervenção de abertura na Conferência
“Em Memória do Holocausto – os 75 anos dos Julgamentos de Nuremberga e Aristides Sousa Mendes”

realizado no Salão Nobre da Relação de Coimbra no dia 29 de Outubro de 2020

                                                                                                   Luís Azevedo Mendes
                                                                                                   Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra

 

– Senhores Conselheiros e Desembargadores presentes

– Senhora Procuradora-Geral Distrital de Coimbra

– Senhor Secretário Geral do Ministério da Justiça, Dr. Carlos Sousa Mendes

– Senhora Secretária-Geral Adunta da Presidência do Conselho de Ministros, Dra Catarina Gonçalves

–  Senhora Vice-Presidente desta Relação

– Senhores Procuradores Gerais Adjuntos

– Senhora Drª Lara Martins, Vogal do Conselho Superior da Magistratura

– Senhor Presidente dos Tribunais de Comarca de Coimbra e Leiria

– Senhor Coronel Rui Martins, 2.º Comandante da Brigada de Intervenção

– Senhor Intendente Nuno Dinis, 2.º Comandante da PSP de Coimbra

– Senhor Dr. Amílcar dos Santos Cunha, em representação da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução

– Senhor Dr. Luís Fidalgo, vogal do Conselho de Administração da Fundação Aristides Sousa Mendes

– Senhores Juízes e procuradores

– Ilustres Convidados

– Minhas Senhoras e meus Senhores

 

1-  É com enorme satisfação cívica, porque a sua utilidade cidadã é indiscutível, e também com a viva consciência da sua oportunidade, no momento, que na Relação de Coimbra organizamos hoje esta conferência que relembra o Holocausto, a mais horrível tragédia cometida por uma sociedade humana no Século XX, estudando-o através da memória dos famosos julgamentos de Nuremberga e do grande salvador humanitário que foi Aristides Sousa Mendes, um diplomata singular, natural da nossa região centro, de Carregal do Sal, e a ela ligado até ao fim dos seus dias.

Trata-se do primeiro evento promovido no âmbito do “Projeto Nunca Esquecer”, aprovado pelo Conselho de Ministros (Resolução N.º 51/2020), a levar a cabo este ano e durante todo o próximo ano e  que tem em vista a divulgação e o estudo sobre o Holocausto e, mais particularmente, o papel assumido por cidadãos portugueses que apoiaram vítimas e refugiados do regime nazi, bem como as vítimas portuguesas.

No sector da Justiça, o projecto mereceu o envolvimento de todos os Tribunais da Relação e é nesse alinhar que a Relação de Coimbra aqui dá o seu pronto e primeiríssimo contributo.

Nesse contributo, pretendemos dar um foco especial ao estudo dos julgamentos de Nuremberga, iniciados há 75 anos, porque aí reencontramos a ideia da força do direito, sobretudo pela sua projecção na doutrina jurídica e pelas bases consistentes que conduziram ao aperfeiçoamento da definição típica dos crimes contra a humanidade ou contra o estatuto humano, a sua prevenção, perseguição e castigo, também à luz de ideias de jurisdição universal e do foro internacional.

E também dar um foco especial no aguçar do orgulho que temos na figura de Aristides Sousa Mendes e à sua ligação aos valores profundos do direito e da justiça que salva, ele mesmo formado em direito em Coimbra e educado por um pai, José Sousa Mendes, que foi um juiz ilustre e um desembargador desta Relação de Coimbra, para onde foi nomeado há quase cem anos.

 

2- Quero agradecer muito ao Dr. Carlos Sousa Mendes, Secretário Geral do Ministério da Justiça, pelo desafio à Relação de Coimbra na parceria com o projecto “Nunca Esquecer”, bem como pela sua iniciativa e inexcedível apoio à organização desta Conferência e da exposição que está patente nos nossos claustros. Também pela parceria, quero agradecer à Dra. Marta Santos Pais, Comissária Nacional do Projeto e que presidirá à mesa. Muito obrigado a ambos.

Saúdo também os nossos outros conferencistas, a Dra.  Cláudia Ninhos, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o Dr. Marco Borges, meu colega e um profundo estudioso da história do direito e das instituições judiciárias e, com muita admiração e respeito, o Dr. António Moncada Sousa Mendes, neto de Aristides Sousa Mendes, que nos honra com uma presença e palavras que nos farão sentir com vivacidade o seu avô, credor de todas as homenagens, bem como à Dra. Esther Mucznik que nos falará em depoimento gravado.

Finalmente, agradeço muito à Orquestra Clássica do Centro e à Dra. Emília Martins, sua presidente, que nos dará, no final, um concerto especialmente preparado para o Nunca Esquecer que tratamos. A Orquestra tem uma parceria inestimável com esta Relação e, agora, com todos os tribunais da Relação, no âmbito do projecto “Concertos da Justiça”, apoiado pela Direcção Geral das Artes, que levará a todo o país, durante dois anos, dezenas de concertos, numa comunicação diferente da habitual na organização da justiça. Também por isso, numa outra parceria tão importante e significativa como é o Projecto “Nunca Esquecer”, os Concertos da Justiça não poderiam faltar a esta Conferência.

 

Minhas senhoras e meus senhores

3- O século XX não foi o único em que se observaram terríveis genocídios que não devem ser esquecidos para lição futura da humanidade. Mas foi o primeiro em que os meios de destruição maciça, ao nível das armas e da sofisticação das técnicas organizativas e ideológicas, atingiram um potencial de máxima desumanidade nas relações de conflito, na guerra e no extermínio.

Há bem pouco tempo recordámos todos, em eventos públicos como este, o fim da 1ª Grande Guerra e o centenário do armistício de Novembro. Tempos tristes então pela dor imensa da destruição e das vítimas, mas também pela tragédia da pandemia da gripe espanhola que de Janeiro de 1918 a Dezembro de 1920 infectou 500 milhões de pessoas e causou nalguns cálculos 50 milhões de mortos, uma tragédia que desgraçadamente hoje nos soa familiar porque vivemos algo muito semelhante.

Nesse recordar, tive ocasião de lembrar uma singular Oração de Sapiência proferida, em Novembro de 1918, pelo Professor Alberto dos Reis, na sala dos Actos Grandes da Universidade de Coimbra, a única Oração inaugural até agora proferida por mestres de direito fora dum tema estritamente jurídico, tão elevada era a justificação para o fazer, porque o que então apenas importava ao mestre era a matéria da educação fundamental do indivíduo e da sociedade, um tema que tem tudo a ver com o programa “Nunca Esquecer” que aqui desenvolvemos.

Alberto dos Reis começou por interpelar com palavras assustadoras. E disse: “Um conflito formidável, de proporções inconcebíveis, acaba de convulsionar o mundo inteiro. (…) tudo o monstro subverteu e tragou” – numa frase que se tornou célebre e depois muito ciada. E perguntava: “Como foi possível, num século de civilização ofuscante, de progressos materiais e morais surpreendentes, uma tão pavorosa explosão de barbaria, de ferocidade, de devastação e de carnificina?

E procurou distinguir, como factores de conduta, o factor do carácter e o da inteligência e sustentou como aquele tem de dominar vitalmente o segundo e como a inteligência pode ser muito perigosa se assim não suceder. Para concluir, dizendo: “Não basta, pois, meus senhores, instruir; é necessário sobretudo educar; é necessário formar o carácter, fortalecer as crenças, apurar os sentimentos”. A soma dos indivíduos livres e educados daria uma sociedade equilibrada, pois o carácter das sociedades é, no seu desempenho, também distinto da sua inteligência.

Permiti-me, com a vossa paciência, fazer um desvio por esta Oração porque está aí resumido o valor do que devem ser os projectos educativos como o “Nunca Esquecer”. Formar o carácter dos indivíduos e, através deles, o carácter das sociedades para domar a inteligência que sem aquele pode ser muito perigosa.

Tão difícil é essa tarefa que a lição da 1ª Guerra não evitou anos depois a 2ª Guerra e o Holocausto que aqui lembramos.

O Estado nazi, um Estado superorganizado, dotado de uma inteligência não formatada pelo carácter humanista, pelos sentimentos, pelo respeito do estatuto humano, conduziu totalitariamente uma sociedade inteira a uma guerra nunca vista.

Nunca vista, porque o que realmente ocorreu de diferente, nunca visto, em relação a outras guerras, mesmo em relação à anterior guerra mundial, e deve ser recordado para educar e prevenir não foi apenas o maior número de vítimas (também nunca visto), mas o massacre colectivo de grupos de pessoas numa lógica de eliminação física que nada tinha a ver com a guerra e, até, em algumas situações entrava em conflito com os objectivos da guerra e muitas vezes estorvava a eficácia das operações. De todos esses massacres, o massacre colectivo dos judeus, a catástrofe judaica, oferece um destaque inaudito pela sua obsessão, sofisticada organização e capacidade de mobilizar homens para matar civis de forma massiva, sem objecções de consciência – essa capacidade inaudita que Hannah Arendt sugestivamente enquadrou como “banalidade do mal”, no livro essencial em que recolheu a sua reportagem sobre o julgamento de Adolf Eichmann, o último dos chamados julgamentos sucessores aos julgamentos de Nuremberga. Tão intenso foi o ataque ao estatuto do ser humano e à diversidade humana, característica daquele estatuto, que a definição dos crimes conexos com a realidade do Holocausto evoluiu a partir de Nuremberga da tipificação como crimes de guerra, como até então era comum, para a de autênticos crimes contra a humanidade de perseguição universal, como foi o caso do julgamento de Eichmann que ocorreu em Jerusalém depois do seu rapto na Argentina.

Os julgamentos de Nuremberga poderão não ter sidos exemplares na sua finalidade de fazer justiça, como alguns apontaram, pois um julgamento só deve servir para fazer justiça e esse não foi o seu único objectivo. Mas um dos outros objectivos ditos “superiores” que tiveram lugar, o de “proceder ao registo do regime de Hitler que possa sobreviver à análise histórica do futuro”, como o definiu um dos assessores processuais em Nuremberga, acabou por ser conseguido e de tal forma que o tornou um clássico de estudo sobre o Holocausto que se nos apresenta fundamental. Daí a importância de os reviver por ocasião dos 75 anos do seu início.

 

Senhoras e senhores

As violentas tensões de sentimentos que conduzem ao ódio e ao furor colectivo contra grupos de pessoas, por motivos raciais, religiosos, nacionalistas ou xenófabos, não acabaram. Pelo contrário, assistimos no mundo ao crescer dos sinais dessas tensões e até da paixão por um ódio vital, o ódio pelo ódio que se alimenta a si mesmo, manipulado nas velhas e nas novas redes pela propaganda populista necessária à competição entre grupos políticos cada vez mais fragmentados.

De súbito, na falta de atenção, a história do Holocausto pode repetir-se ainda que com outras roupas, como tantas vezes se repetiu noutras tragédias humanas. Parece impossível, mas há cem anos também assim se pensava e aconteceu o que aconteceu.

Por isso, para prevenir e para “nunca mais” é melhor dar o máximo valor ao “Nunca Esquecer”.

Muito obrigado pela vossa atenção.