Empreitada: direito de resolução do contrato com fundamento na perda do interesse do credor – Helena Susano

 

 Helena Susano
Assessora Jurídica da Magistratura Judicial do TRC
  Aquestão que esteve na base do presente estudo é a de apurar, de acordo com as circunstâncias concretas do caso que nos foi colocado, e que no corpo do artigo se referirão, se o empreiteiro tem o direito de resolver o contrato com base no fundamento legal da perda do interesse do credor, pelo facto de o dono da obra não ter cumprido atempadamente o pagamento, de acordo com o plano de pagamentos acordado. De seguida, analisar-se-á a existência do mesmo direito de resolução por parte do dono da obra, sustentado na improcedência daquele direito do empreiteiro e consequente incumprimento do contrato por parte do mesmo.(1)
Quid juris?

 

  O contrato de empreitada é um contrato sinalagmático na medida em que dele emergem obrigações recíprocas e independentes: a obrigação de realizar uma obra tem como contrapartida a obrigação de pagar o preço. Este, nos termos do disposto no art. 1211º, nº 2, do CC, deve ser pago no acto da aceitação da obra, portanto a final, caso não haja convenção em contrário. No caso que serviu de base a este estudo, as partes outorgantes convencionaram o pagamento parcelar do preço total, em estreita correspondência com a execução das etapas da construção da obra a realizar.

 

  O empreiteiro iniciou a obra em Março de 1996 e, da factualidade provada, apura-se, igualmente, que o dono da obra efectuou o pagamento de 5 300 000$00, relativo às quatro primeiras etapas, apenas em Novembro desse mesmo ano. Resulta também da matéria assente que em Agosto, ou seja, cinco meses após o início das obras, o empreiteiro parou os trabalhos por falta de pagamento, resultando dos autos que em 2/7/96 emitiu a factura nº 57, relativa ao pagamento da primeira tranche, em 25/7/96, a factura nº 58, relativa ao pagamento da segunda, e em 20/8/96, a factura nº 59, relativa à terceira. Assim, o dono da obra não pagou os trabalhos relativos à primeira etapa das obras e entrou em mora, no que diz respeito a essa prestação, pelo menos em 2/7/96, e consecutivamente em 25/7/96 e 20/8/96. É igualmente matéria assente que em 12/8/96 o empreiteiro parou as obras, ou seja, antes mesmo da emissão da terceira factura relativa à terceira etapa, sendo certo que nessa altura já havia iniciado a quarta etapa (cuja factura nº 60 foi emitida em 2/10/96) que não concluiu, apesar de em 12 de Novembro desse mesmo ano ter recebido os 5 300 000$00, dos quais 900 000$00 eram devidos aos trabalhos de reboco que não chegou a ser feito na parede poente por falta de autorização do dono do terreno confinante para a colocação de andaimes, autorização essa que cabia ao dono da obra colher.

 

  É incontestável que o dono da obra entrou em mora e, ipso facto, o empreiteiro utilizou a excepção de não cumprimento que lhe era facultada pela norma constante do art. 428º do CC, por si invocada e reconhecida pelo dono da obra. No Ac. do STJ de 18/6/96, inBase de Dados Jurídico-Documentais da DGSI, pode ler-se que “O funcionamento da excepção de não cumprimento apenas justifica um retardamento ou dilação na prestação devida por quem dela beneficia até que cesse o incumprimento da outra parte”.Porém, e contraditoriamente, quando o empreiteiro recebe o preço devido pelas quatro primeiras etapas, sendo certo que esta última se encontrava por concluir, abandona a obra alegando, em sede de contestação, que em Agosto havia perdido objectivamente o interesse que tinha na sua prestação, apesar de alegar também que havia parado, mas não abandonado a obra.

 

  E chegados aqui, importa subsumir os factos ao direito para apurar se se encontram preenchidos os pressupostos que concedem ao empreiteiro o direito a resolver o contrato. Dita o art. 808º, nº1, do CC que “Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for fixada dentro do prazo que razoavelmente for fixada pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

 

  Em anotação a este art. os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela escrevem ” O credor não pode, em princípio, resolver o negócio em consequência da mora do devedor. O que pode é exigir o cumprimento da obrigação pelos danos sofridos“. Este último ilustre civilista, inRLJ, nº128, p. 136 e sgs. explica de forma exemplar a linha divisória entre a mora e o não-cumprimento de que o credor facilmente se pode socorrer. “De um lado estão os casos em que o credor, por virtude do retardamento da prestação, perde (objectivamente) todo o interesse que tinha nela.” O retardamento equivale, aqui, ao não-cumprimento (definitivo) da prestação (art. 808º, nº1, 1ª parte). Em todos os demais casos, apesar da mora, a prestação continua a ter interesse e só se converte em não-cumprimento (definitivo) a partir do momento em que a prestação se não realize no prazo que, sob a cominação referida na lei, razoavelmente for fixado pelo credor (art. 808º, nº1, 2ª parte), sendo entendimento generalizado que este prazo tanto se aplica às obrigações sem prazo (inicial) estabelecido, como àquelas que o têm ab initio fixado.

 

  Analisemos, então, a primeira hipótese.

 

  No caso sub judice, estamos perante uma situação de mora, e não resultando dos autos as datas precisas do terminusdas etapas, podemos norteá-las pela data de emissão das facturas, com uma margem de erro que é, in casu,desprezível, ou seja, no tocante à primeira prestação desde 2/7/96, no que respeita à segunda desde 25/7/96 e no que concerne à terceira desde 20/8/96. Assim, a 12/8/96, quando o empreiteiro parou os trabalhos, o dono da obra encontrava-se em mora há, no máximo e provavelmente, cerca de 3 meses. Haverá, in casu, por força da mora, motivo objectivo para a perda do interesse do credor conducente à resolução do contrato?

 

  Cremos que não e sustentamos a nossa posição na doutrina e na jurisprudência que passamos a citar. O Prof. Antunes Varela, no artigo daRLJ acima referido, entende que, no caso de obrigações geradoras de prestações pecuniárias, a mora no cumprimento nunca se traduz na perda objectiva do interesse, pelo facto de o credor ter sempre utilidade no seu recebimento. Baptista Machado, inRLJ, 118º, p.55, escreve que “É necessário que a perda – a perda e não a simples diminuição – do interesse na prestação seja justificada à luz de circunstâncias objectivas. (…) A apreciação objectiva da situação, prescrita na lei, exige algo mais do que esse puro elemento subjectivo, que é a alteração da vontade do credor, apoiada na mora da outra parte. (…) A perda do interesse há-de ser justificada segundo o critério de razoabilidade, próprio do comum das pessoas»”. Os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela registam, a propósito desta temática, que ” A perda do interesse do credor deve, nos termos do nº 2, ser apreciada objectivamente. Pretende-se evitar que o devedor fique sujeito aos caprichos daquele ou à perda infundada do interesse na prestação. Atende-se, por conseguinte, ao valor objectivo da prestação, não ao valor da prestação determinado pelo credor, mas à valia da prestação medida (objectivamente) em função do sujeito.” Sobre esta matéria, disserta Ana Prata escrevendo que “a perda de interesse, como se sabe e o nº 2 do art. 808 determina, deve ser apreciada objectivamente, isto é, não pode consubstanciar-se numa mera alegação infundamentada de desinteresse ou ser contraditória com comportamentos seus reveladores de subsistência de interesse no cumprimento“.(o negrito é nosso)
  No mesmo sentido alinha maioritariamente a jurisprudência, como se pode exemplificar através do Ac. do STJ de 21/5/98, inCJSTJ, tomo II, p. 91 onde lê “no comum das obrigações pecuniárias, a prestação devida, não obstante a mora do devedor, continua a revestir todo o interesse que tinha para o credor.“. Se bem que tal entendimento não afaste uma análise casuística, antes a exija, no caso em apreço não se vislumbra que o empreiteiro tenha qualquer razão em invocar a perda objectiva do interesse como causa resolutiva do contrato, ao abrigo do disposto no art. 808º, nº1, 1ª parte, tanto mais que, a reportar-se a Agosto de 1996, há comportamentos com ela contraditórios que a afastam.

 

  A perda objectiva do interesse do credor exige uma manifestação exterior da vontade, de acordo com o disposto no nº 2 do mesmo preceito legal, que não se concretizou no mês de Agosto, tendo o material atinente à construção permanecido no local da obra, mostrando-se contrária a esta atitude o facto de o empreiteiro ter recebido a totalidade do dinheiro correspondente à quarta etapa de construção, ainda não concluída. É certo que o empreiteiro faz prova de que o dono da obranunca cumpriu pontualmente os pagamentos, o que o deixou sem liquidez financeira para continuar a obra ; sem autorização e sem dinheiro teve de a parar em 12/8/96, tendo sido obrigado a adiantar sempre as verbas necessárias ao pagamento dos materiais e mão de obra dos seus operários, o que causou grave prejuízo financeiro na laboração da empresa; como o dono da obra não ligava às interpelações do empreiteiro para os pagamentos, este perdeu completamente o interesse e confiança que depositara naquele.Porém, vejamos: exactamente por causa de todos estes factos invocou e utilizou o empreiteiro a excepção do não cumprimento, não decorrendo deles que haja uma perda do interesse objectivo em continuar e concluir a obra, uma vez que receba as sucessivas contraprestações devidas. E não pode vir o empreiteiro invocar simultaneamente, a partir da mesma data, um e outro institutos jurídicos, no seu escopo incompatíveis.

 

  Não se verifica, pois, o direito à resolução do contrato fundado na perda do interesse objectivo do empreiteiro.

 

  Vejamos, consequentemente, a segunda hipótese prevista no artº 808º, nº1.

 

  Nesta hipótese, explica o Prof. Antunes Varela, “o prazo cuja fixação é facultada ao credor funciona como um segundo prazo ou um prazo suplementar, mas resulta da imposição da lei (…) que a ordena, aliás, não para satisfazer apenas o interesse do credor em esclarecer a situação e se poder libertar definitivamente, se quiser, de um contrato inconveniente, mas para conceder também ao devedor em mora uma derradeira chance de cumprir a obrigação a seu cargo e de manter o credor ainda vinculado ao contrato que lhe interesse conservar”.E adiante acrescenta “A interpelação admonitória não surge neste art. 808º como um simples pressuposto da resolução do contrato (…) mas antes uma ponte obrigatória de passagem da tal ocorrência transitória da mora para o cumprimento da obrigação ou para a situação mais firme e mais esclarecedora do não-cumprimento (definitivo) da obrigação“.(o negrito é nosso).
  Não foi sequer alegado que o empreiteiro tivesse utilizado a interpelação admonitória regulada no art. 808º, nº1, sendo certo que, ainda que o tivesse sido, o dono da obra pagou o preço correspondente às prestações em falta (que o empreiteiro recebeu), obstando, assim, a que aquele pudesse resolver o contrato com base no incumprimento por conversão da situação de mora em falta de cumprimento da obrigação.

 

  No Ac do TRP, de 7/11/95, recolhido na Base de dados Jurídico-Documentais da DGSI, pode ler-se “Em contrato de empreitada, um simples atraso na colaboração devida pelo dono da obra não confere ao empreiteiro o direito ao seu abandono definitivo, pelo que este, com tal abandono, se colocou em situação de incumprimento culposo do contrato“.

 

  Face ao entendimento de que não tinha o empreiteiro sustentação legal para resolver o contrato, com base na perda do interesse objectivo do credor na prestação, resta apurar se o poderia fazer o dono da obra com base no incumprimento por banda daquele e quais as consequências daí resultantes.

 

  Da matéria dada como provada apura-se que, tendo o empreiteiro, em Novembro de 1996, abandonado a obra, que permaneceu, ipso facto, abandonada e inacabada, e porque essa situação se prolongou por três anos, o dono da obra, em 17/2/99, notificou o empreiteiro para a concluir, o que não sucedeu.

 

  Nestes termos, estamos perante o incumprimento do contrato por parte do empreiteiro. Neste sentido o Ac. do TRP de 28/9/2000, inBase de Dados Jurídico-Documentais da DGSI, onde se lê “O contrato de empreitada considera-se resolvido, por incumprimento definitivo se, ultrapassado o prazo para execução da obra sem que esta esteja concluída, sem justificação, o dono da obra concede ao empreiteiro um prazo razoável para aquela conclusão, sob pena de ter a obrigação como não cumprida, e, decorrido esse prazo, o empreiteiro nem sequer reiniciou a execução da obra, reportando-se a data da resolução do contrato ao termo do referido prazo.”

 

  Consequentemente, tem o dono da obra direito a ver-se indemnizado pelos danos decorrentes do incumprimento do contrato por parte do empreiteiro.

 

 Notas

 

(1) Esta questão foi suscitada no recurso de apelação nº 3131, que esteve na génese deste estudo, e que consta do Ac da RC de 23/1/2001