Discurso do Presidente do TRC na inauguração da exposição 40 anos da revisão do CC

Discurso do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, Luís Azevedo Mendes, na cerimónia de Inauguração da exposição “Igualdade entre a Mulher e o Homem na Família – 40 anos da Revisão do Código Civil de 1977”

 

–  Ex.mº Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

– Senhora Desembargadora Teresa Féria e Senhor Professor Francisco Manuel Brito Pereira Coelho, ilustres intervenientes na mesa desta sessão evocativa

– Senhores Presidentes dos Tribunais das Relações do Porto e Évora

– Senhor Procurador-Geral Distrital de Coimbra

– Senhor Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados

– Senhores Desembargadores

– Senhores Procuradores Gerais Adjuntos

– Senhor Vogal do Conselho Superior da Magistratura, Dr. Armando Cordeiro

– Senhor Secretário Geral do Ministério da Justiça

– Senhor Presidente do Instituto de Medicina Legal

– Senhores Presidentes dos Tribunais de Comarca de Coimbra e Castelo Branco

– Senhores Juízes, Procuradores e advogados presentes

– Senhores Funcionários deste Tribunal

– Ilustres e Distintos Convidados

Minhas Senhoras e meus Senhores

 

1. Inauguramos hoje a exposição “Igualdade entre a Mulher e o Homem na Família – 40 anos da Revisão do Código Civil de 1977“, que assinala um importantíssimo marco de progresso legislativo, fruto necessário da Constituição de 1976 e dos ventos libertadores que a fundaram, marco na luta pela dignidade da mulher e também, exactamente por isso, na dignidade do homem e da família.

Dos muitos momentos comemorativos que, a esse respeito, ocorreram este ano, este é o mais próximo da data da publicação do Decreto-Lei n.º 496/77 que introduziu a revisão, a 25 de Novembro de 1977 e daí que se justificasse em pleno um outro momento comemorativo, desta vez em Coimbra, que sublinhasse a sua importância.

Agradeço a Vossa Excelência Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que tenha prontamente aceite presidir a esta sessão solene de inauguração e que é, no ciclo de comemorações, a primeira com lugar numa instituição do poder judicial. A presidência de Vossa Excelência confere ao aniversário da reforma a elevada vénia que os tribunais que a aplicam lhe merecem tributar, como a todas as leis marcantes que densifiquem práticas normativas directamente respeitantes a direitos fundamentais.

Agradeço também aos nossos conferencistas, a Senhora Desembargadora Teresa Féria, activista de sempre na luta pelos direitos das mulheres, e o Senhor Professor Francisco Manuel Brito Pereira Coelho, ilustre membro do Centro de Direito de Família da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e – permitam-me que o diga – filho do grande Mestre que é o Professor Pereira Coelho, participante activo nos trabalhos da reforma de 1977, sua âncora fundamental no saber jurídico, e autor de alguns dos manuscritos que fazem parte da exposição que inauguramos e que lhe dão um tom emotivo.

Finalmente, agradeço penhoradamente ao Dr. Carlos Sousa Mendes, Secretário Geral do Ministério da Justiça, o organizador da exposição e sua verdadeira alma, que desde há meses logo se prontificou em apresentar a exposição neste Tribunal da Relação de Coimbra.

Agradeço, também, a presença de todos os ilustres e distintos convidados.

2.  Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, minhas senhoras e meus senhores

O Código Civil de 1966, entrado em vigor em 1967, praticamente 100 anos depois da publicação da Carta de Lei que aprovou o Código Civil de 1867, encontra-se ligado a este Tribunal por um acto público singular.

Poucos terão a noção mas a sua preparação demorou 22 longos anos, desde o Decreto Lei n.º 33.908, de 1944, que anunciou o propósito de substituir o Código de Seabra. Em 1959, este mesmo Salão Nobre em que nos encontramos estava em fase de conclusão, depois de longas e intermináveis obras, graças ao empenho do Ministro da Justiça Professor Antunes Varela. E foi com o seu mesmo empenho que a inauguração veio a ter lugar nesse mesmo ano, em simultâneo com a inauguração, aqui mesmo, de uma grande exposição bibliográfica dos trabalhos relativos ao Código Civil de 1867 e preparatórios do então futuro Código Civil Português.

Daí que, prestes a entrar no ano em que se celebra o centenário deste Tribunal da Relação, não possa deixar de acolher com entusiasmo todas as iniciativas ligadas a assinalar e debater o Código Civil, no aniversário dos seus cinquenta anos e no dos quarenta anos da sua revisão mais emblemática, à semelhança do que veio sucedendo noutros lugares do nosso país.

Uma dessas iniciativas é a da exposição que hoje inauguramos. Mas em breve, para Janeiro próximo, nesta Relação de Coimbra, esta exposição sobre a revisão de 1977 será ampliada, recebendo e convivendo conjugadamente com a exposição sobre os cinquenta anos do Código, também organizada pela Secretaria Geral do Ministério da Justiça.

Um Código Civil é uma obra de imenso labor. Para além da captação rigorosa das exigências regulatórias ligadas ao tempo histórico, dos princípios jurídicos pertinentes, do grande trabalho científico, da moderação e equilíbrio que cuidam da lógica e homogeneidade, evitando a turbulência das rupturas estéreis, impõe-se a clareza, a concisão, a sobriedade e a simplicidade da linguagem que devem ter as leis de travejamento do sistema jurídico.

Em 1961, praticamente concluídos os anteprojectos relativos a todas as matérias que deveriam constar do novo Código Civil, o Professor Pires de Lima em Lição proferida na Universidade de Coimbra, ainda dava conta das vozes que se opunham à nova codificação e preferiam a revisão do velho Código e a regulação de matérias inovatórias em legislação extravagante e daí que saísse em defesa da codificação e dela falasse.

As correntes de pendor social, socializante e mesmo marcadamente socialistas, com recorte transversal em todas as doutrinas políticas de direita ou de esquerda, contemporâneas dos trabalhos do novo Código Civil, dominavam o pensamento que conduzia às novas soluções. O direito privado tinha de acolher limitações de sentido social, de direito social, e – no dizer daquele mestre – uma intervenção do Estado para tutelar e proteger a dignidade humana e dos mais fracos, restringindo as liberdades de cada um em defesa dos interesses gerais, numa inspiração numa nova filosofia de solidariedade ou de socialização ou humanização do direito. A tendência assumida aconselhava a codificação, para que o seu resultado merecesse o respeito dos aplicadores, da doutrina à jurisprudência.

Curiosamente, em matéria de direito de família, o Professor Pires de Lima, já colocava como um dos reflexos daquela inspiração humanizadora a alteração da situação da mulher no casamento e do poder paternal. E citando-o, assinalava assim uma incongruência histórica: «A posição da mulher casada, incapaz ainda hoje no ponto de vista patrimonial, representa nos códigos do século passado um verdadeiro enigma em face das ideias da época, pois não se baseia essa incapacidade nem na liberdade nem na igualdade das pessoas, dois dogmas da Revolução Francesa. Por isso se designou já em França a instituição como bastarda, produto de duas tendências opostas: de um lado, a tradição do poder marital; do outro, a protecção da mulher». Mais afirmava que o Código de Seabra, inspirando-se no Código de Napoleão, criara para a mulher solteira, casada ou viúva uma situação de chocante inferioridade que urgia alterar.

Se a noção de anacronismo face às ideias de decência ou dignidade humana era assim exposta, a verdade é que no Código Civil publicado em 1966 ele se manteve profundamente, no que toca à regulação do casamento e da família. O contrapeso ao fulgor do individualismo pelas correntes socializantes, voltou a colectivizar a família com uma direcção desigual, inferiorizando a mulher.

Apenas com a Constituição de 1976, com a consagração do princípio de que os cônjuges têm iguais direitos quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos, foi impositivamente possível chegar às soluções da reforma que aqui hoje comemoramos, soluções essas que hoje consideramos tão naturais que custa a conceber que antes não tivessem acolhimento. Daí também que convenha a comemoração, para avivar memórias e evitar recaídas impróprias.

3. Excelências

Minhas Senhoras e Meus Senhores

A igualdade entre pessoas, emanação do princípio da dignidade humana, não convive com dirigismos públicos fáceis. A crise do direito civil, do direito privado, que conduziu à publicização de muitas das suas matérias regulatórias há 50 anos, não podia deixar de antecipar problemas futuros nas questões da igualdade na família, onde as linhas definitivas de evolução cada vez mais se desconhecem, haja em vista já e por exemplo a alteração de 2010 ao Código e que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Como afirmou a Drª Leonor Beleza na sua intervenção em sessão comemorativa da reforma de 1977, no dia 8 de Março: «O nosso olhar sobre a família, e sobre as formas que pode assumir, conheceu alterações substanciais. E a ciência, ela própria, avança para possibilidades não antes imaginadas. O Direito lá vai seguindo, por vezes sem capacidade de antecipação. Em particular, e no que respeita, não apenas às regras de estabelecimento da filiação, mas à própria avaliação e tratamento legal das novíssimas possibilidades de concepção e nascimento que a ciência tem vindo, e virá, a permitir, seria bom antecipar e regular, antes de que o Direito tenha de vir a correr reparar o que não conseguiu prever. Há uma outra zona que se tem mantido relativamente imune ao Direito, mas que precisa de atenção em muitas áreas, e também, creio, nas áreas de regulamentação das incapacidades, da família, e se calhar das sucessões. Refiro-me ao envelhecimento, e à atenção ao que aparece como novas possibilidades em virtude da ciência, mas também se traduz em múltiplas impreparações da sociedade, incluindo nas regras que adopta.»

Estamos certamente longe de consagrar a plena igualdade na regulação civil da matéria referente às pessoas. Importante, porém, é ter sempre presente o debate que ocorre no espaço público e observar sempre uma adequada ponderação e densificação das questões que vão surgindo, à luz dos direitos humanos fundamentais mais básicos. E nessa tarefa – permitam-me também que o diga – a jurisprudência deve ter especiais responsabilidades e cuidados, pois muitas delas chegam primeiro aos tribunais e só depois são legislativamente acompanhadas.

Da minha parte, como presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, sempre acolherei todas as iniciativas que, como a presente, sirvam o debate esclarecedor e dinâmico que a dignidade humana necessita para se afirmar com efectividade.

Muito obrigado a todos.

 

(Luís Azevedo Mendes)

Coimbra, 28 de Novembro de 2017