Difamação. Tipo objectivo. Ofensa da honra. Liberdade de expressão

DIFAMAÇÃO. TIPO OBJECTIVO. OFENSA DA HONRA. LIBERDADE DE EXPRESSÃO

RECURSO CRIMINAL Nº  2364/18.0T9CBR.C2
Relator: PEDRO LIMA
Data do Acórdão: 12-10-2022
Tribunal: COIMBRA (JUÍZO LOCAL DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENACOVA)
Legislação: ART. 180.º DO CP; ARTS. 10.º, N.º 2, DA CEDH; ART. 37.º, N.ºS 1 E 2, DA CRP

Sumário:

I – A liberdade de expressão deve dar guarida a um excesso linguístico, é para isso que serve, e de todo o modo a ofensa relevante nos termos do art. 180.º, n.º 1, do CP, não pode sê-lo porque o visado assim subjectivamente a sinta, mas apenas se objectivamente for apta a como tal haver-se.
II – Agressividade e firmeza de discurso, tanto mais quando a matéria é de interesse público (e porventura até identitária para os contendentes), têm de aceitar-se e serão mesmo desejáveis, enquanto marca de água de um genuíno debate, com liberdade de expressão, a qual por seu lado tolera até rudeza ou mesmo alguma grosseria; o que já não implica é contemporização com ataques pessoais que, resultando na lesão significativa da honra dos visados, afinal desbordem, em qualquer compreensão social aceitável, do adequado àquela expressão e debate de ideias, à crítica de posições, acções ou objectivos.
III – As expressões dirigidas, através de uma rede social, pela arguida à assistente, no âmbito de um divulgado, pela segunda (médica veterinária), processo de esterilização de animais domésticos: “isto é matar”; “são assassinas”; “uma assassina”; “isto são maus tratos”; “isto é matar bebés”; “esta gente é louca e cruel para os animais”; “esterilizar bebés de dias é matá-los”, revelam, à luz do que ficou dito, um manifesto excesso hiperbólico, incorporado na querela sobre aqueles procedimentos veterinários da assistente e da crítica, bem ou mal fundada tecnicamente, conta ela movida, e assim escudada pela liberdade de expressão.
IV – O mesmo critério apreciativo não pode ser feito em relação à locução “gente de merda”, também inscrita no mesmo acto comunicacional, porquanto essa formulação linguística consagra, de modo incontornável, um directo e imediato juízo de valor fortemente depreciativo sobre a própria pessoa da assistente, sem outro propósito senão rebaixá-la e enxovalhá-la; por isso, é idónea ao preenchimento do tipo objectivo do crime de difamação.
V – Por seu turno, as frases divulgadas por outra arguida, visando também a mesma assistente: “esterilizar [sic] uma bebé com poucos dias de vida?, isto lembra o tempo dos nazistas” e “isto é macabro e desumano (…)”, pese embora o patente azedume da linguagem e até, sob o ponto de vista das representações dominantes, um certo mau gosto no assimilar de uma gata de tenra idade a uma “bebé”, estão amplamente cobertas pela liberdade de expressão, não podendo, deste modo, considerar-se como ofensivas da honra da assistente, sob pena de com isso ser afirmado um constrangimento à crítica (chilling effect), resultando em limitação excessiva da liberdade de expressão da arguida, com a inerente violação dos arts. 10.º, n.º 2, da CEDH, e 37.º, n.º 1, da CRP.
VI – Mesmo tendo em conta o extremado mau gosto e até a natureza provocatória da comparação entre esterilizar gatos na clínica veterinária e a singular tragédia humana do extermínio de pessoas pelo regime nazi, a frase concreta evidencia inequivocamente não ser mais do que um excesso de linguajar. A recorrente não imputa à assistente o extermínio de pessoas ao jeito nazi, nem mesmo lhe chama nazi; segundo qualquer leitor o apreende, o sentido claro da frase, em si mesma e sobretudo no contexto, é o da recorrente manifestar o entendimento (mal ou bem, mas livremente assim entende) que esterilizar gatos de tenra idade, nos modos em que a assistente o faz e publicitou fazê-lo, equivale a exterminá-los.

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