Crime de violência doméstica. Crime de violação. Concurso efectivo de crimes. Trato sucessivo. Suspensão da execução da pena. Regras de conduta
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CRIME DE VIOLAÇÃO. CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES. TRATO SUCESSIVO. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA. REGRAS DE CONDUTA
RECURSO CRIMINAL Nº 486/21.0GCLRA.C1
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Data do Acórdão: 07-06-2023
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA
Legislação: ARTIGOS 50.º, 52.º, 152.º, N.º 1, E 164.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário:
I – Apontam-se como tuteladas pela proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal.
II – A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção comporta e também com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna, mas a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.
III – Existe uma relação de concurso efectivo de crimes, a ser punido nos termos do artigo 77.º do Código Penal, entre o crime de violência doméstica e o crime de violação, não apenas porque este último é punível com uma moldura penal abstracta cujo limite mínimo é de 1 ano e o limite máximo é de 6 anos de prisão, enquanto que o primeiro é punível com uma moldura penal abstracta cujo limite mínimo é de 2 e o limite máximo é de 5 anos de prisão, mas ainda porque, no caso dos autos, os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciada e mostram-se autonomizados, tal como foi decidido.
IV – No crime de violação quando não resulte da matéria provada nem a determinação do concreto número de vezes em que ocorreram os actos sexuais não consentidos, nem a sua delimitação, no espaço e no tempo, justifica-se o recurso à figura do trato sucessivo, à luz do princípio do in dubio pro reo.
V – A imposição de deveres e de regras de conduta constitui sempre um poder-dever do juiz, no primeiro caso condicionado pelas exigências de reparação do mal do crime e no segundo vinculado à necessidade de afastar o delinquente da prática de futuros crimes.
VI – As regras de conduta assumem maior importância do que os deveres em sentido estrito, na medida em que se ligam, ao contrário destes, ao cerne socializador da pena de suspensão de execução de prisão.
VII – Se, depois de sair da residência onde viveu com a assistente, o arguido fez ameaças de morte a esta e aos filhos comuns, em consequência do que aquela passou a viver apavorada, em estado de medo e de ansiedade permanentes e isolada em casa, e se passava de carro, várias vezes, junto da residência da assistente, a regra de conduta de não frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações na localidade de residência desta, imposta como condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, está relacionada, em termos globais, com os fins preventivos almejados no caso concreto, designadamente com as exigências de proteção da vítima e, apesar da sua extensão e implicação no direito de deambulação do arguido, revela-se adequada e proporcional aos fins visados.