Crédito ao consumo. Nulidade formal. Abuso de direito. Inalegabilidade

CRÉDITO AO CONSUMO. NULIDADE FORMAL. ABUSO DE DIREITO. INALEGABILIDADE
APELAÇÃO Nº
3753/13.2TJCBR.C1
Relator: VÍTOR AMARAL
Data do Acordão: 04-04-2017
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – JL CÍVEL – JUIZ 3
Legislação: ARTS.220, 286, 289, 334 CC, DL Nº 446/85 DE 25/10, DL Nº 359/91 DE 21/9
Sumário:

  1. A celebração de um contrato exige um encontro convergente de vontades e, tratando-se de contrato sujeito a forma legal, só há vinculação válida se as declarações negociais convergentes dos contraentes, contemplando os elementos essenciais do contrato, obedecerem à forma legalmente imposta.
  2. A solicitação, por via telefónica, de um financiamento (crédito ao consumo) de € 20.000,00, com determinada modalidade de reembolso, apresentada em formulário pré-preenchido, assinado apenas pelo aderente, com referência a determinadas condições gerais predispostas, não passa de proposta negocial, sem vinculação contratual, se a contraparte não a aceita.
  3. Apresentando tal contraparte, por sua vez, contraproposta verbal, referente a diverso montante de financiamento (€ 15.000,00) e outro valor de reembolso mensal em prestações, que foi aceite pelo destinatário, sem redução a escrito, ocorre vinculação contratual em contrato de mútuo mercantil verbal no âmbito de relação de consumo.
  4. Sendo este contrato nulo por vício de forma – inexistência de forma escrita e omissão de entrega de cópia do contrato assinado ao consumidor –, tal invalidade, devidamente invocada, obriga à restituição em singelo de tudo o que haja sido prestado (fica excluída a remuneração do capital, bem como juros moratórios se, ao tempo da instauração da ação, inexistindo mora, já haviam sido restituídos montantes que perfaziam valor global superior à quantia emprestada).
  5. Ainda que se entendesse ter sido celebrado contrato escrito, sujeito apenas, em processo negocial, a alterações posteriores verbais, as estipulações aditadas haveriam de ter-se por reportadas a elementos essenciais do contrato, aos quais se estende a exigência de forma legal (cfr. art.º 221.º do CCiv.), não deixando margem para redução ou conversão contratual (art.ºs 292.º e 293.º, ambos do CCiv.).
  6. O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento – de correção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, postulando certos modos de atuação em relação, seja na fase pré-contratual, seja ao longo de toda a execução do contrato, incluindo na extinção e liquidação da relação, designadamente para exercício do poder de invocação da nulidade do contrato por vícios formais.
  7. A análise prudente quanto ao abuso do direito por parte do consumidor que invoca vícios formais do contrato de crédito ao consumo, após período de execução contratual, não prescinde, ante a desigualdade manifesta de meios entre as partes, sendo o consumidor a parte tipicamente débil, da ponderação quanto à conduta do financiador, mormente se, pela forma como atuou, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao crédito, infringiu, em termos censuráveis, os deveres cooperação, lealdade e informação impostos pelo princípio da boa-fé, caso em que, assim tendo ocorrido, é de afastar a inalegabilidade da invalidade.
  8. A regra, no âmbito das relações de consumo, é a da proteção do consumidor (normalmente um não especialista, designadamente em questões de contratação de crédito ao consumo, face a um profissional apetrechado), só devendo ser desconsiderada perante conduta manifestamente censurável e injustificada, com grave prejuízo para a contraparte.
  9. Não é de ter por contraditória ou desproporcionada/desequilibrada – ao menos em termos clamorosamente ofensivos da boa-fé objetiva, de molde a constituir abuso do direito – a invocação da nulidade do contrato de crédito pelo consumidor, em caso de inobservância da forma escrita e do dever de entrega de cópia do contrato, mesmo se durante anos houve entrega das prestações de reembolso verbalmente acordadas, com restituição de montante até superior ao emprestado, e o consumidor apenas invocou a invalidade na ação de cumprimento, onde, porém, é pedido o pagamento de quantia superior à que havia sido emprestada.
  10. Podendo a nulidade ser invocada e conhecida a todo o tempo e resultando de atuação imputável ao financiador, cuja prestação é contemporânea do vício (invalidade), não ocorre relevante “investimento de confiança” por aquele – perante a conduta adimplente, e de não invocação da invalidade, da contraparte –, que devesse ser tutelado, no âmbito do abuso de direito, em prejuízo do consumidor, o que levaria ao afastamento da instituída ordem pública de proteção, dirigida à defesa deste.

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