Contrato de fornecimento. Prestações de obrigações genéricas. Defeitos da coisa. Prazos de caducidade do direito

CONTRATO DE FORNECIMENTO. PRESTAÇÕES DE OBRIGAÇÕES GENÉRICAS. DEFEITOS DA COISA. PRAZOS DE CADUCIDADE DO DIREITO
APELAÇÃO Nº
2142/15.9T8CTB.C1
Relator: SÍLVIA PIRES
Data do Acordão: 19-12-2018
Tribunal: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO – J2
Legislação: ARTºS 1º, 2º, 3º E 230º, Nº 2 DO CÓDIGO COMERCIAL; 539º E SEGS., 913º A 917º, 918º E 939º DO C. CIVIL.
Sumário:

  1. O tipo de relações jurídicas continuadas em que alguém se obriga a transmitir regularmente a propriedade de coisas à contraparte, mediante o pagamento de um preço, caracteriza um contrato juridicamente atípico, embora socialmente típico, denominado contrato de fornecimento, que se aproxima do contrato de compra e venda, apresentando-se como um negócio definitivo e unitário, cujas prestações se sucedem e prolongam no tempo, sendo o fundamento deste contrato a satisfação continuada de uma necessidade duradoura da parte que é fornecida.
  2. Estamos, pois, perante um contrato de fornecimento, que tem natureza comercial – em resultado do disposto nos art.ºs 1º, 2º e 230º, n.º 2, do C. Comercial -, ao qual se devem aplicar as regras da compra e venda, por força da dupla remissão resultante do disposto nos art.ºs 3º do C. Comercial e 939º do C. Civil.
  3. Contrariamente às prestações de obrigações específicas que incidem sobre algo concretamente individualizado, as prestações de obrigações genéricas incidem sobre bens que não se encontram individualizados, não existindo, no contrato de fornecimento sob análise, a obrigação de entregar um concreto objecto, único na sua existência, mas a obrigação de entregar um bem apenas identificado quanto ao seu género, com mais ou menos determinação das características que lhe devem assistir, mas que não se encontra individualizado.
  4. Tendo-se acordado entre Autora e Ré no fornecimento por esta àquela de fosfato de cálcio, com determinação de algumas das suas qualidades, através de especificações técnicas deste produto, estamos perante um contrato em que a prestação a que a Ré se obrigou corresponde a uma obrigação genérica sujeita às regras especiais previstas nos art.º 539º e seguintes do C. Civil.
  5. O art.º 918º do C. Civil, com a epígrafe ‘Defeito superveniente’, incluído no capítulo das regras especiais previstas para regerem os contratos de compra e venda, é aplicável, por força do disposto no art.º 939º do C. Civil, aos contratos de fornecimento.
  6. A remissão para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações constante do art.º 918º do C. Civil é inicialmente prevista para as situações em que a coisa vendida deve ser entregue em momento posterior à celebração do contrato e a consequente transmissão do direito de propriedade – art.º 879º, a), do C. Civil -, ocorrendo nesse ínterim a sua deterioração, aquisição de vícios ou perda de qualidades.
  7. Mas o art.º 918º do C. Civil, na sua segunda parte, estende a mesma remissão para as regras do incumprimento das obrigações, nos casos da venda respeitar a coisa futura ou indeterminada de certo género, ou seja coisa genérica.
  8. Compreende-se a equiparação de situações. Apesar de na venda de coisa futura ou de coisa indeterminada de certo género o direito de propriedade apenas se transmitir quando a coisa ingressar no património do alienante (no caso da venda de coisa futura) ou ocorrer a concentração da obrigação genérica – art.º 408º, n.º 2, e 541º do C. Civil –, também a existência de defeitos na coisa vendida não pode ser atribuída a erro do comprador no momento da celebração do contrato, uma vez que a coisa não existia ainda no património do vendedor ou não estava ainda individualizada.
  9. Daí que também nestas situações se tenha considerado que os defeitos da coisa resultam de um incumprimento da obrigação de entrega da coisa, uma vez que esta não tem as qualidades que foram assumidas contratualmente, pelo que as regras aplicáveis são as previstas para o incumprimento das obrigações e não as que regem o erro na celebração dos contratos.
  10. Porém, tratando-se de um incumprimento da obrigação de entrega da coisa transmitida em consequência da celebração de um contrato de compra e venda, não existem apenas as regras gerais previstas para o incumprimento de qualquer obrigação – art.º 790º e seg. do C. Civil -, mas também as regras especiais constantes dos art.ºs 913º e seg. do C. Civil que pressuponham um incumprimento da obrigação de entrega, não se cingindo a regular a existência de um erro do comprador na celebração do contrato, as quais prevalecem, em caso de conflito, sobre as regras gerais sobre o incumprimento das obrigações.
  11. Na verdade, o disposto nos art.ºs 913º a 917º do C. Civil combinam efeitos próprios do erro na conclusão dos negócios jurídicos e efeitos próprios da disciplina de uma das modalidades do não cumprimento das obrigações – o cumprimento defeituoso.
  12. É o que sucede com o disposto nos art.ºs 916º e 917º do C. Civil, apesar da redacção deste último preceito.
  13. Apesar deste preceito apenas se referir à acção de anulação, o que aparentemente incluía o disposto nestes dois art.ºs exclusivamente no regime dos vícios da vontade na celebração de um negócio de compra e venda, a doutrina e a jurisprudência tem estendido a sua aplicação aos demais direitos conferidos ao comprador em caso de existência de defeitos na coisa vendida, designadamente àqueles que resultam do regime do incumprimento da obrigação de entrega da coisa vendida, pelo que deve considerar-se que o disposto nestes dois art.º s também se inclui nas regras especiais que integram o regime do incumprimento da obrigação de entrega, para onde remete o art.º 918º do C. Civil.
  14. Assim se conclui que os prazos de caducidade previstos nos art.ºs 916º e 917º do C. Civil são também aplicáveis aos casos de compra e venda de coisas genéricas.
  15. Conforme resulta do funcionamento dos prazos de caducidade consagrados nos art.ºs 916º e 917º do C. Civil, os mesmos iniciam a sua contagem com o conhecimento do defeito – prazo para a denúncia -, a entrega da obra – segundo prazo para a denúncia – e a denúncia do defeito – prazo para o exercício do direito -, pelo que os direitos que se extinguem pelo decurso desses prazos só podem ser aqueles que têm unicamente como pressuposto a existência do defeito, como seja o direito à sua eliminação, o direito à substituição da coisa, o direito à redução do preço, o direito de resolução do contrato e o direito de indemnização que visa ressarcir apenas o prejuízo resultante da própria existência do defeito.
  16. Já relativamente ao direito de indemnização pelos danos reflexos que resultaram da existência do defeito, designados como danos colaterais, não pode o mesmo estar sujeito àqueles prazos, desde logo porque a sua ocorrência não coincide necessariamente com os eventos que determinam a contagem daqueles prazos, podendo muitos deles ter lugar já após tais prazos terem-se esgotado, assim como, relativamente a eles perde justificação o fundamento para a consagração daqueles prazos.
  17. Assim, e independentemente de sabermos se deve ser aplicado o regime da responsabilidade contratual, em que o direito de indemnização apenas está sujeito ao prazo ordinário da prescrição, ou o da responsabilidade extracontratual, em que o direito de indemnização está sujeito aos prazos de prescrição previstos no art.º 498º do C. Civil, seguro é que ao direito de indemnização por danos colaterais resultantes de defeito em coisa objecto de prestação em contrato de compra e venda não são aplicáveis os prazos curtos de caducidade previstos nos art.ºs 916º e 917º do C. Civil.
  18. Estes prazos não são, porém, aplicáveis ao exercício do direito de indemnização pelos danos colaterais provocados pelo defeito da coisa vendida.
  19. Apesar do art.º 917º do C. Civil se referir apenas à acção de anulação como o acto impeditivo da caducidade aí prevista, a doutrina e a jurisprudência têm estendido o seu âmbito aos demais direitos conferidos ao comprador em caso de existência de defeitos na coisa vendida, nomeadamente ao direito de indemnização e ao de redução do preço, pelo que também o exercício desses direitos dentro do referido prazo de 6 meses após ter sido efectuada a denúncia dos defeitos impede a sua caducidade.
  20. O exercício de tais direitos, contrariamente ao que sucede com o direito de anulação do contrato expressamente referido no art.º 917º do C. Civil, não exige o recurso aos tribunais, podendo ser efectuado por mera declaração à contraparte. 

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