Abuso sexual de crianças. Violação. Actos sexuais com adolescentes. Declarações de menor. Declarações para memória futura. Valoração. Reinquirição da vítima em audiência de julgamento
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS. VIOLAÇÃO. ACTOS SEXUAIS COM ADOLESCENTES. DECLARAÇÕES DE MENOR. DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA. VALORAÇÃO. REINQUIRIÇÃO DA VÍTIMA EM AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
RECURSO CRIMINAL Nº 429/20.8JACBR.C1
Relator: PAULO GUERRA
Data do Acórdão: 17-03-2022
Tribunal: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J3)
Legislação: ARTS. 171.º, 164.º E 173.º, DO CP; ART. 271.º DO CPP
Sumário:
- Em qualquer processo judicial, os julgadores dificilmente conseguem tomar uma decisão sem serem influenciados por pistas que os ajudam a organizar e a simplificar essa mesma informação (procurando tomar decisões com base numa quantidade menor de informação), sendo essa tendência tanto maior quanto maiores as pressões externas para que essas decisões sejam tomadas de uma forma rápida, ou quanto maior a incerteza.
- Estas pistas são designadas por heurísticas e são habitualmente usadas de uma forma automática ou inconsciente – apesar de terem como função ajudar a organizar e a simplificar a informação, tornam os processos de tomada de decisão menos fidedignos e, nesse sentido, com uma maior probabilidade de incluir erros ou enviesamentos.
- Como tal, terá de haver uma análise muito cuidada e profunda do caso concreto a fim de se evitarem tais enviesamentos que podem turbar a convicção criada.
- Em delitos sexuais em que são vítimas crianças, é normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.
- Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações contenham imprecisões, contradições, omissões e inconsistências, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características.
- De tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que a criança mentiu.
- É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, mas não mais do que isso, tanto mais que podem existir outros indícios que corroborem a essencialidade do depoimento e o núcleo central.
- Para efeitos do artigo 173º do CP, a inexperiência da vítima pode ser motivada por uma forçada e tenebrosa experiência movida pelo medo, pela intimidação e pelo receio de desagradar a alguém a quem se está ligada emocionalmente.
- Nesse sentido, há também imaturidade – além de impossibilidade física – nessa decisão de não se conseguir dizer não ao agressor, sendo determinante para a actuação dolosa do agente o abuso dessa inexperiência da sua vítima assim concebida e conseguida e que lhe vai garantir a desejada e desejável menor força de resistência por parte dela aos seus avanços sexuais.
- Se nas declarações da vítima para memória futura foram proporcionadas ao arguido todas as garantias de defesa, é de recusar uma reinquirição da vítima se o tribunal se aperceber que o recorrente apenas discorda da convicção dos julgadores no que à valoração da prova concerne, designadamente no se reporta aos depoimentos prestados pela ofendida, tecendo a esse propósito considerações sem que as mesmas tenham qualquer fundamento, querendo apenas impor aquilo que seria a sua própria convicção sobre os factos.
- A possibilidade de prestar novamente depoimento na audiência de julgamento deve ser usada com alguma cautela, no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente, quando estão em causa vítimas especialmente vulneráveis, como são as crianças.
- A não ser assim, transforma-se em regra o que deve ser uma excepção, sob pena de se desvirtuar todo o sistema de protecção de uma vítima que é vulnerável por ser criança e que vai reviver o seu passado de horror de forma impune e desnecessária, e apenas por razões que se prendem com o mero jogo processual de «partes» interessadas em forçar o tribunal a inverter alguma ideia pré-concebida que tenha sido criada após as declarações iniciais e desejavelmente únicas daquela.
- A prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima, em julgamento, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos considerados essenciais pelo foro.